COMO TODO DIA

 

 

Como  todo dia,

chegou pouco depois das sete.

Ela, desviou o olhar da Gabriela, de 7,

ergueu-se, abriu  os braços

e, como todo dia, exclamou "Meu amor!"

Abraçaram-se  "Não faz isso, eles estão olhando, que horror!"

A filha esperou sua vez

anotando tudo na lista,

para referência futura

na sessão com o analista.

O filho, em quarto crescente,

como todo adolescente,

ficou com os fones do ualquimem

como se o pai não fosse ninguém.

Então, como todo dia,

ele quis partir, buscar um destino por outra via.

 

Como todo dia,

cansado, só lavou as mãos, no banheiro,

enquanto ruminava a falta de dinheiro.

Foi à cozinha.

Torceu  o nariz pra panela de canja,

pegou um copo, espremeu a laranja.

No bar, Campari sobre o suco, gelo à vontade,

e da juventude sorveu um gole de saudade.

Sentou na "sua" poltrona, olhos na tela,

ouvidos na falação da mulher

e nos diálogos da novela

- angústia de como não parecer grosseiro ou desinteressado

do que sabia estar cada vez mais afastado.

E, como todo dia,

perdeu partes da trama e não ouviu direito

quando ela reclamou da torneira com defeito.

 

Como todo dia,

ela anunciou "A janta está na mesa!"

Ele não respondeu, ela insistia,

variando sobre o mesmo tema, repetia:

"Você não me escuta? a janta está na mesa!",

"Olha, nós vamos acabar e você ainda não veio  pra mesa",

"Vem comer meu amor!" - suplicante - "vai esfriar!",

"Depois não reclama" - ele nunca reclamara  -,

então, a última tentativa: 

"E eu é que gosto de novela!" - bem provocativa!

Retornando de seus devaneios, levantou,

fez o prato, e sem palavra, jantou,

olhos baixos, garfadas tediosas.

Ao fim, como todo dia,

jogou suas sobras no lixo da cozinha,

lavou prato e talheres, voltou à poltrona,

largou-a falando sozinha.

Mais tarde, sem "boa noite",

foram-se todos,

cada um a seu tempo.

Exceto ele. Abriu a porta para o vento,

ficou na sala, abajur aceso, tv ligada,

na mão direita um cigarro,

na esquerda outro Campari-laranjada.

 

O sono batia,

ele resistia

a "só mais um breique"

do filme antigo, mudo,

até desistir, desligando tudo

e, como todo dia,

desorientado,

deu com a canela no maldito tampo-de-vidro-da-mesa-de-centro.

Cambaleou quarto a dentro,

sentou-se no "seu" lado do colchão,

tirou a roupa, deixou no chão.

No escuro, tudo apagado,

foi ao banheiro, a última mijada.

Fechou a janela, o vento incomodava,

ligou o despertador do rádio-relógio,

trocou o refil do espanta-mosquito

- era alérgico a esse maldito -

e mastigou a pastilha do antiácido que amenizava

a queimança que o álcool provocava.

 

Como todo dia,

ele viu o trinta e dois

que o amigo o forçara a comprar, depois

de inflamado discurso sobre marginalidade,

violência e insegurança na atualidade.

E ali,  ao lado dela, esparramada,

invadindo "sua" metade da cama,

aconchegado no torpor da cana,

ele ponderava: que decisão mais valia?

Desesperançado, como todo dia,

olhou para o buraco daquele cano-solução,

abriu a boca num bocejo e apontou para o céu. Sem emoção.

 

E como todo dia,

cansado,

deixou-se relaxar sentindo o fim

da ardência no estômago.

"Que alívio meu Deus!"

Agradecimento hipócrita de um ateu!

Então guardou a arma - ameaça -,

desligou a si mesmo e ficou feliz pela graça.

No estreito espaço que lhe sobrou,

com a consciência mais leve, se deitou,

enveredando pela noite em sono pesado,

profundo, levemente embriagado.

 

Aliás, como todo dia.