NOTAS DE: OS DEMÔNIOS

Autor: Fiódor Mikhailovitch Dostoiévski 

Ed. Martin Claret – (1860/2018/2023)

 

PREFÁCIO

 

Dostoiévski ficou horrorizado com a notícia que leu em um jornal sobre o destino de Ivanov, cujo único delito consistia em ter contestado a autoridade de seu chefe Netcháiev, e, sobretudo, com a sinistra figura do tal “justiceiro popular”, capaz de sacrificar a soma dos valores humanos em prol de uma abstrata causa progressista.

 

Em 25 de novembro de 1869 o corpo do estudante Ivan Ivanov de 23 anos, de convicções socialistas, integrante da “Sociedade da rasprava(*) popular”, foi encontrado em um matagal. Descobriu-se que ele fora assassinado a pauladas por Serguei Netcháiev, o líder carismático da tal “sociedade”, pela razão de um desentendimento entre os dois. Ivan sucumbira à extrema intolerância de quem visava à transformação radical do mundo sem se importar com o preço que teria de pagar por ela.

(*) Justiça sumária feita pelas próprias mãos, linchamento (em russo).

 

Trechos da “Catequese do revolucionário”;

“O revolucionário é um homem condenado. (...) Tudo nele é absorvido por um só interesse exclusivo, por um só pensamento, por uma só paixão – pela revolução. (...) Ele rompeu todo e qualquer vinculo com a ordem cívica e toda a sociedade civilizada, com todas as leis, conveniências e condições aceitas por todos, com a moral desta sociedade. (...) Conhece apenas uma ciência, a ciência da destruição. (...) Ele despreza a opinião pública. (...) Tudo quanto contribuir para o triunfo da revolução é moral para ele; tudo quanto o estorvar é imoral e criminoso. Para ele só existe um gozo, um consolo, uma recompensa e uma satisfação – o sucesso da revolução. “

 

A se houvesse muitas pessoas iguais a Netcháiev, se eles formassem um movimento de massa, um exército ou um partido disposto a mudar a face da ]T}erra com uma revolução nunca vista antes, a promover um banho de sangue que a  humanidade mal poderia imaginar? Assim foram as questões perturbadoras que incitaram Dostoiévski a escrever Os Demônios.

 

Quando o provo perde a fé [num salvador, num solucionador de tudo] não é mais um povo. [Pois] O povo é o corpo de Deus.

 

[Dostoiévski previu o que ocorreria na Rússia em 1917 com 48 anos de antecedência.]

 

[OS HUMANOS E OS DEMÔNIOS]

 

Stepan Trofímovitch: Não reconheço mais nada... Só que nossos tempos hão de voltar, e tudo o que estiver tropeçando agora seguirá outra vez, com firmeza o caminho certo. Senão, o que será de nós?

 

Chátov: E quem não tiver povo não tem Deus! Fiquem sabendo aí, com toda a certeza, que quem deixa de compreender seu povo, quem perde suas ligações com ele, perde também, logo e na mesma proporção, a fé pátria (...).

 

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Conta o Narrador: em geral, se me atrever agora a exprimir minha opinião num assunto tão melindroso assim, todos esses senhores de talento médio, que costumamos tomar, enquanto vivos., praticamente por gênios, não só se apagam, de certa forma inopinada e quase sem deixar rastros, da memória humana ao falecer, mas, vez por outra, tão logo brotar uma nova geração que acabará substituindo a de seus contemporâneos, caem no esquecimento ainda em vida e passam, com uma rapidez inconcebível, a ser desprezados por todo o mundo. Aqui conosco, Isso se faz tão repentinamente quanto a troca de cenários no teatro.

 

Narrador: Não é raro acontecer que tal escritor, a cujas ideias se atribuía, por muito tempo, Uma profundeza extraordinária e de quem se esperava que viesse a exercer uma influência extraordinariamente séria sobre o progresso de nossa sociedade. Virgula demonstra, pelo fim de seus dias, tanta escassez e tanta mesquinhez, a de sua ideiazinha principal que ninguém mais lamenta o esgotamento tão rápido das suas forças criativas.

 

Lipútin tem muita imaginação e vida dor, A vida é medo, e o homem infeliz. E o homem é infeliz. Agora tudo são dor e medo. Agora o homem gosta de vida porque gosta de dor e de medo. Assim é que foi feito. A vida é dada agora em troca de dor e de medo, E nisso consiste o ludibrio todo. Agora o homem não é ainda aquele homem. Mas haverá um homem novo, feliz e orgulhoso. Para quem der na mesma viver ou não viver, aquele será um homem novo. Quem vencer a dor e o medo, aquele será um Deus. E aquele outro, Deus não existirá mais. substitui migalhas por montanhas.

 

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Kiríllov: Só teremos a liberdade toda quando vivermos ou não vivermos der na mesma. Este é o máximo objetivo.

Narrador: O homem tem medo de morte porque gosta de vida, é assim que eu entendo, e foi assim que a natureza mandou.

Kiríllov: A vida, é dor, a vida é medo, e o homem é infeliz. Agora tudo são dor e medo. Agora o homem gosta de vida porque gosta de dor e de medo. Assim é que foi feito. A vida é dada agora em troca de dor e de medo, E nisso consiste o ludibrio todo. Agora o homem não é ainda aquele homem. Mas haverá um homem novo, vivo, feliz e orgulhoso. Para quem der na mesma viver ou não viver, aquele será um homem novo final. Quem vencer a dor e o medo, aquele será um deus. E aquele outro Deus não existirá mais.

 

Chátov: Se quiseres vencer o mundo inteiro, vence a ti mesmo.

 

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Capitão Lebiádkin: Essa miúda palavrinha, “por que?” está espalhada pelo universo inteiro desde o primeiro dia da criação, minha senhora e toda a natureza grita a cada minuto para seu criador: “Por quê?”, e já faz 7000 anos que não recebe resposta alguma. Será que cabe somente ao Capitão Lebiádkin responder a essa pergunta, minha senhora, e será isso justo?

 

Piotr Stepânovitch: Sim, compreendo. É como se fosse uma religião: quanto pior vive uma pessoa, ou então, quanto mais embrutecido ou pobre é um povo inteiro, tanto mais ele se obstina em sonhar com sua recompensa no Paraíso, e se, além disso, 100.000 sacerdotes se empenham ainda em atiçar seu esse seu sonho, especulando em cima dele, aí... AÍ, compreendo a senhora.

 

Stepan: Meu amigo, a verdade verdadeira é sempre inverossímil, será que sabe disso? Para tornar uma verdade mais verossímil, é preciso, sem falta misturá-la com um pouco de mentira. (...) Será que entendes aí que, se vocês põem a guilhotina em primeiro plano e com tanto arroubo, é unicamente porque decepar as cabeças é a coisa mais fácil e ter uma ideia é a coisa mais difícil do mundo!

 

Stávroguin: O socialismo tem proclamado em particular desde a sua primeira linha, que é uma instituição ímpia e pretende embasar-se nos princípios da ciência e da razão, exclusivamente. A razão e a ciência sempre cumpriram, desde o início dos tempos, e continuam cumprindo na vida dos povos tão só um papel secundário e acessório, e vão cumprir esse papel até o fim dos tempos. Os povos são compostos de movidos pela força de um insaciável desejo de ir até o fim, mas ao mesmo tempo ela chega a negar esse fim. (...)

 

[Talvez nesta fala de Chátov esteja a mais forte razão para a Rússia desejar impor ao resto do mundo a ideia comunista:] Se um grande povo não acredita que a verdade pertence unicamente a ele, (única e exclusivamente a ele), se não acredita que só ele mesmo pode e deve ressuscitar e salvar o mundo inteiro com sua verdade, então ele deixa logo de ser um grande povo e logo se transforma num material etnográfico no lugar de um grande povo. Um povo que for realmente grande jamais poderá aceitar um papel secundário no meio da humanidade, nem sequer um papel de primeira ordem, mas tão somente um papel primeiríssimo e exclusivo. Ao perder essa fé, não é mais um povo. Contudo, a verdade é uma só, e só um dos povos é que pode, por conseguinte, ter um deus verdadeiro, mesmo que os demais povos tenham seus próprios deuses especiais e grandes. O único povo portador de Deus é o povo russo. (...) Para fazer o molho de lebre, precisamos de uma lebre; para acreditar em Deus, precisamos de um Deus.

 

Nikolai Vsêvolodovitch: Talvez seja verdade que toda a segunda metade da vida humana se compõe, ordinariamente, tão só, de hábitos adquiridos em sua primeira metade.

 

Capitão Lebiádkin: “Tranquem rápido as igrejas acabem com deus, desfaçam casamentos, destruam os direitos de herança, peguem as facas” - apenas isso, e só o diabo sabe o que está por vir.

 

Narrador: modo geral, sempre há em qualquer desgraça do próximo, algo que alegra o olhar de outra pessoa, seja ela qual for.

 

Varvara Petrovna: A esmola deprava tanto quem der como quem receber e, além disso, não alcança seu objetivo, porque tão somente aumenta a mendicância. Os preguiçosos que não querem trabalhar, ficam reunidos ao lado de quem dá esmola, iguais aos jogadores que cercam a mesa de jogo, esperando ganhar um dinheirinho. Só que os miseráveis tostões jogados para eles não bastam nem para um centésimo deles. Quanta esmola é que o senhor distribuiu em toda a sua vida? Umas 8 grivnas no máximo, lembre aí. Tente lembrar quando deu esmola pela última vez.

 

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Kapiton Maxímovitch: De modo geral, tenho percebido que a fé sempre diminui à luz do dia.

 

Chigaliov: dedicando minhas energias ao estudo das questões da organização social, da sociedade porvir, que há de substituir a existente. Cheguei à convicção de todos os criadores de sistemas sociais, desde os tempos mais remotos até este nosso ano. De 1870 e pouco, terem sido sonhadores, conta dores de fábula e basbaques que se contradiziam sem entender absolutamente nada das ciências naturais nem daquele estranho animal chamado de homem. Platão, Rousseau, fourier, As colunas de alumínio: Tudo isso serve no máximo, para os pardais, mas não para a sociedade humana. (...) Fiquei confuso com meus próprios dados e minha conclusão está em contradição direta com base, ponto. a ideia inicial que tomei por base. Começando pela Liberdade ilimitada, termino com o despotismo ilimitado. Adicionarei aqui, no entanto, que não pode haver nenhuma solução de fórmula social além da minha.

 

Liámchin: Conheço as ideias dele. Para resolver a questão em definitivo, ele propõe dividir a humanidade em 2 partes desiguais. Um décimo das pessoas receberia a Liberdade individual e o poder ilimitado sobre os restantes nove décimos, os quais deveriam perder sua individualidade e formar uma espécie de rebanho, alcançando assim, ao longo de várias transformações ancoradas numa submissão ilimitada, o estado de inocência original, semelhante a um paraíso primitivo, ainda que tivessem, aliás, de trabalhar. (...) Eu cá, em vez do paraíso, pegaria esses nove décimos da humanidade, já que não temos mesmo o que fazer com eles, e explodiria todo mundo, mas deixaria apenas um grupinho de pessoas instruídas, que passaria, enfim, a viver cientificamente.

 

Lipútin: Visto que nem com as circunstâncias mais propícia daria para efetuar tal carnificina [aniquilar 100 milhões de pessoas] em menos de 50 ou, digamos, em 30 anos, porque aqueles outros não são carneiros, afinal de contas, e não deixarão que os degolem tão facilmente, não seria melhor, quem sabe, pegar os nossos pertences e partirmos para algumas ilhas pacíficas, lá do outro lado dos mares pacatos, e fecharmos ali, com serenidade, os nossos olhos?

 

Verkhôvenski:  Cada membro da sociedade, naquele sistema dele, fica de olho nos outros e tem a obrigação de delatá-los. Qualquer um pertence a todos, e todos a qualquer um. Todos são escravos e são iguais em sua escravidão. Em casos extremos há calúnia e assassinato, mas o principal é a igualdade. Antes de tudo, fica mais baixo o nível da instrução, das ciências e dos talentos. Um nível alto das ciências e dos talentos é acessível apenas a quem tiver altas capacidades, só que não precisamos aqui de altas capacidades. Quem tinha altas capacidades sempre se apossava do poder e se tornava déspota. Quem tem altas capacidades não pode deixar de ser déspota e sempre é mais corruptor que útil, acabando expulso ou executado. Cícero tem a língua cortada, copérnico fica com olhos furados, Shakespeare é apedrejado: eis o que é o chigaliovismo! (...) Sou a favor de Chigaliovi, viu? Chega de instrução, chega de ciência. Mesmo sem nenhuma ciência, haverá material por 1.000 anos, contanto que haja obediência. Só uma coisa é que falta neste mundo: a obediência. A sede de instrução é, por si só, uma sede aristocrática. Mal temos família ou amor, já vem o desejo de propriedade. Nós vamos abafar o desejo: propagaremos, bebedeira, fofoca e delação; propagaremos uma devassidão inaudita; apagaremos qualquer gênio ainda na infância. Tudo será reduzido ao denominador comum, a igualdade será total. (...) Só o necessário é necessário. Este é daqui em diante, o lema do globo terrestre. Mas a convulsão também é indispensável, e nós, os governantes, cuidaremos disso. Os escravos devem ter seus governantes. Uma obediência total, uma impessoalidade total, só que a cada 30 anos. Chigalióv propõe uma convulsão, e eis que todos começam, de repente, a devorar um ao outro, mas até certo limite, unicamente para não se entediarem. (...) Já lhe disse: a gente se infiltrará no meio do povo. Sabe que já agora estamos muitos e muito fortes. Os nossos não são apenas os que degolam e incendeiam, (...) Aqueles ali só atrapalham a gente. Não entendo nada sem disciplina. É que não sou socialista, mas um velhaco, há-há-ha. Escute, que os contei todos. O Mestre escola, que ri, com as crianças, de seu Deus e de seu berço, é, desde já nosso. O advogado que defende um assassino instruído, alegando que é mais desenvolvido do que suas vítimas e não pode deixar de matar a fim de conseguir dinheiro, é, desde já, nosso. Os escolares que matam um mujique para ter uma sensação diferente, são nossos. Os jurados que absolvem quaisquer criminosos são nossos. O procurador que treme, lá no tribunal, por não ser liberal [progressista] bastante, é nosso, nosso. Os administradores, os literatos... oh os nossos são muitos, muitos mesmo, e nem sabem disso!

 

Nicolai: O que faz o socialismo? Destrói as forças antigas, porém, não traz nenhuma nova.  (...) [O socialismo] tem uma noção humilhante da natureza humana.

 

[Nós, os grandes homens!]

 

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Narrador: A gentalha tomou de supetão a dianteira passou a criticar em voz alta tudo quanto houvesse de sagrado, embora antes, não ousasse nem abrir a boca, e as pessoas mais dignas, antes tão bem-sucedidas em sobrepujá-la, deram-lhe subitamente ouvidos e ficaram caladas, sendo que algumas delas se puseram até a soltar risadinhas furtivas e vergonhosas.

 

Minerva: deusa romana da sabedoria, padroeira das artes.

 

Karmazínov: Eu, um ancião decrépito, declaro solenemente que o espírito da vida assopra como dantes e que a força vital não se esgotou em nossa geração nova. O entusiasmo da Juventude hodierna é tão puro e luminoso quanto o de nossa época. Só uma coisa aconteceu: o deslocamento dos objetivos, a substituição de uma beleza pela outra. O mal-entendido todo consiste em compreendermos o que é mais belo: Shakespeare ou as botas, Rafael ou querosene? (...) Mas como se vive bem com tudo prontinho, hein, mimalhos?

 

Maníaco: Senhores! Há 20 anos [portanto, por volta de 1850] , às vésperas da guerra contra a metade da Europa, a Rússia constituía um ideal aos olhos de todos os servidores desde a quinta até a segunda classe. Os literatos eram sensores; o marchar das tropas. era ensinado nas universidades; as próprias tropas configuravam um balé, e o povo pagava impostos e se calava sobre o chicote da servidão. Nosso patriotismo se limitava a cobrar propina do vivo e do morto. Quem não cobrava propina era considerado rebelde por violar a harmonia.

 

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“Juro que não sei se a gente pode mirar um incêndio sem algum prazer!” [Dostoiévski não indica de quem ouviu tal formulação.]

 

Piotr Stepânovitch: De resto, sempre tive certeza de que você cumpriria seu dever como um homem independente e progressista. [Grifo meu para ressaltar que o termo já vem de mais de 150 anos!]

 

Piotr Stepânovitch: [o líder falando a seus correligionários logo após a execução sumária e traiçoeira de Chátov:] A ideia de suspeitar de algum de nós, nem passará pela cabeça de ninguém, especialmente se vocês mesmos souberem portar-se como se deve, de modo que a parte principal dependerá de vocês mesmos e da sua convicção absoluta que se consolidará, eu espero, a partir de amanhã. Foi por isso, diga-se de passagem, que vocês se uniram para formar uma organização específica, uma livre reunião de correligionários, para compartilhar em dado momento, nessa causa comum, as suas energias e para observar e controlar, se preciso, um ao outro. A cada um de vocês, cabe uma responsabilidade suprema. Estão convocados a renovar uma causa decrépita, que fede de tanto ficar estagnada: é isso que lhes cumpre ter sempre, para se animarem, diante dos olhos. Por enquanto, sua tarefa consiste toda em pôr tudo abaixo: tanto o estado quanto a moral dele. Só ficaremos nós mesmos, que nos destinamos de antemão a assumir o poder: vamos cooptar quem for inteligente e cavalgar quem for bobo. Vocês não têm de se envergonhar com isso. Precisamos reeducar uma geração inteira para torná-la digna de liberdade. Ainda haverá milhares de Chatóvs pela frente. Nós nos organizaremos a fim de dominar o mundo: é vergonhoso deixarmos de pegar aquilo que estiver largado por aí, dando sopa.

 

Kiríllov: Tenho de revelar a minha descrença... Para mim, não há a ideia mais alta que a de que Deus não existe. A história humana está do meu lado. O homem não fazia outra coisa senão inventar Deus. Para viver sem se matar: é nisso que toda a história universal tem consistido até agora. Só eu, pela primeira vez em toda a história universal, não quis inventar Deus. (...)

Piotr Stepânovitch: Se Deus não existe, eu sou Deus. (...) Se Deus existe, a vontade é toda dele, e nada posso contra essa vontade. Se Deus não existe, a vontade é minha, e tenho a obrigação de revelar meu arbítrio. (...)

Kiríllov: Conscientizar-se de que Deus não existe e não se conscientizar, na mesma ocasião, de que você próprio se tornou Deus é um absurdo, senão você se matará sem falta. Se estiver consciente disso, será um czar e não se matará mais, porém viverá em sua glória mais plena. (...) Passei 3 anos buscando o atributo da minha divindade e acabei por encontra-lo: o atributo da minha divindade é o arbítrio!

 

Narrador: estrada mestra, é algo comprido, muito comprido assim, algo cujo fim não se vê ao longe, como se fosse a vida humana, como se fosse um sonho humano final. Uma ideia se encerra nessa estrada mestra, mas que ideia se encerra no itinerário? O itinerário representa o fim de uma ideia. Vive la grande route. E depois, seja o que Deus quiser.

 

[19 de fevereiro de 1861, data em que o regime servil foi abolido na Rússia.]

 

“Conheço as tuas obras, que nem és frio, nem quente; oxalá foras frio ou quente! Assim, porque és morno, e não é quente nem frio, vomitar-te-ei da minha boca. Porquanto dizes: Rico sou, e estou enriquecido, e de nada tenho falta; e não sabes que és um coitado, e miserável, e pobre, e cego, e nu. Apocalipse, 3:14-17.

 

753

Sófia Matvéievna lê uma passagem no livro de Lucas: “Ora, andava ali pastando no monte uma grande manada de porcos; rogaram-lhe, pois, que lhes permitisse entrar neles, e lho permitiu. E tendo os demônios saído do homem, entraram nos porcos; e a manada precipitou-se pelo despenhadeiro no lago, e afogou-se. Quando os pastores viram o que acontecera, fugiram, e foram anunciá-lo na cidade e nos campos. Saíram, pois, a ver o que tinha acontecido, e foram ter com Jesus, a cujos pés acharam sentado, vestido e em perfeito juízo, o homem de quem haviam saído os demônios; e se atemorizaram. Os que tinham visto aquilo contaram lhes como fora, curado, o endemoninhado.”

Stepan: (...) Esse trecho miraculosos (...) tem sido para mim, pela vida afora, uma pedra no sapato, de sorte que eu me recordava desse trecho desde a infância. Só que agora me veio uma ideia, uma comparação. Muitas ideias me vêm agora à cabeça, muitas: é algo igualzinho à nossa Rússia, está vendo? Aqueles demônios, que saem do possesso e entram nos porcos, são todas as úlceras, todos os miasmas, toda a imundice, todos os demônios grandes e pequeninos que se acumularam neste nosso querido, imenso possesso, nesta nossa Rússia, ao longo dos séculos (...).

 

763

Stepan: Se os humanos forem privados daquele imensurável, não viveram mais e morrerão desesperados. O imensurável e o infinito são tão necessários ao homem quanto este pequeno planeta onde ele habita... Amigos meus e todos, e todos: viva a Grande Ideia. A eterna Ideia imensurável. Qualquer homem, quem quer que seja, precisa venerar aquilo que for a Grande Ideia. Até mesmo o homem mais tolo precisa de, pelo menos, algo grande. Oh, como eu quero vê-los a todos, de novo! Eles não sabem, não sabem que neles também se encerra a mesma Grande Ideia eterna!

 

Narrador: As tragédias de Chátov e de Kírillov, o incêndio, a morte de Lebiádkin e outras coisas se relegaram, pois, a segundo plano, enquanto em primeiro ficaram Piotr Stepanovitch e a sociedade secreta, aquela organização, aquela rede. Indagado por que haviam sido perpetrados tantos assassinatos, escândalos e vilezas, respondeu Piotr, ardendo de ansiedade: “para abalar sistematicamente os alicerces, para decompor sistematicamente a sociedade e todos os princípios; para desencorajar todos e transformar tudo num mingau, e depois, quando a sociedade ficasse, dessa maneira, desengonçada, esmorecida e doentia, cínica e descrente, mas com uma sede infinita de alguma ideia norteadora e de sua autopreservação, para dominá-la de supetão, hasteando a bandeira da rebelião e apoiando-se em toda uma rede de grupos compostos de 5 homens cada um, os quais agissem nesse meio tempo, aliciando os partidários e buscando praticamente todos os modos de ação e todos os pontos fracos que se pudesse aproveitar.”

 

Narrador: Erkel (...) era jovem e indefeso, sendo essa uma prova evidente de se tratar apenas de um fanático vitimado por um aliciador político (...).