RECEITA QUE VISA PERDER CLIENTE

Especial para grandes empresas de cartão de crédito.

 

 

1)     Estabeleça uma anuidade compatível com os interesses das viúvas (americanas, na maioria) acionistas da “corporation”.

2)     Não faça propaganda institucional para destruir sua imagem. É fato comprovado que quanto mais você anuncia mais propaga seus maus serviços. Mas as viúvas não  gostam da palavra gasto, quer dizer, “expenses”.  O melhor é deixar o “boca-a-boca” funcionar. Demora mais, mas é eficiente e não custa nada.

3)     Não registre o histórico do cliente. Esqueça esse negócio de marketing de relacionamento. Isso é invenção de Regis McKenna e outros consultores. Bobagem.

4)     Se algum jovem executivo inovador (melhor seria dizer espírito-de-porco) tiver implantado um sistema desses, não o use para nada que possa beneficiar seu cliente.

5)     Em nenhuma hipótese estabeleça qualquer critério para identificar clientes fiéis e pontuais. Clientes é a raça mais infiel que existe. São como bola de tênis, estão sempre mudando de lado.

6)     Mas se você se sentir obrigado a ter tais critérios só para prestigiar “essas idéias do fundador da companhia de reconhecer bons e maus clientes”, só o faça para provar ao mau cliente que o mau cliente é um mau cliente. Nunca para premiar os “good guys

7)     Não se relacione. Não se comunique com seu cliente. Concentre-se no seu foco: as viúvas. Só lance cartões “co-brand” (com a sua marca e a de um banco) e “co-co-brand” (a sua, a do banco e a do terreiro da Mãe Joana). Divida as responsabilidades. Recebimento é responsabilidade de um banco do brasil parceiro na “jogada”. E o relacionamento fica por conta da Mãe Joana.

8)     Não faça mimos a seus associados. Trate a todos, igualmente, como inimigos porque eles só estão esperando uma oportunidade para “fock you”.

9)     Misture seu sistema de crédito com seu sistema de segurança. Esta é, inconfundivelmente, a melhor técnica. Não falha nunca e dá resultados imediatos.

10)            Se você chegou até aqui, está indo muito bem. Agora deixe passar alguns anos.

11)            Feito isto, dê atenção especial aos mais antigos. Esqueça os clientes mais recentes. Eles ainda não estão preparados, pois não sabem quão determinado você está em seu intento.

12)            Comece mantendo um rígido controle sobre o valor excedente ao limite mensal. Mesmo por 1 centavo você deve negar a autorização. Você não pode transigir nisto. Cliente é um bicho abusado. Você sabe bem porque, uma vez ou outra, também é cliente. Hoje deixa passar 1 centavo, amanhã, ele quer ultrapassar 10 reais, e... você vai acabar perdendo o controle. Caso sinta-se tentado a tratar cada caso como cada caso, faça meditação para recuperar sua força e determinação. Meditação está na capa da Exame. Está na moda.

13)            Agora é só esperar. Vá para a frente da tela do computador que acompanha as consultas que a todo instante são feitas ao maravilhoso sistema de informação que você implantou com o dinheiro e a aprovação das viúvas.

14)            Mas você deve ser obstinado pois sabe que a punição dos menores desvios evita os maiores. Procure por alguma autorização eletronicamente negada por limite ultrapassado em não mais que 5% do limite de compras mensal, dois dias depois do vencimento da fatura. Por exemplo, um cliente que, tendo um limite de R$ 3.0000,00, já tenha atingido R$ 2.900,00 e esteja querendo fazer uma compra de, digamos, R$ 160,00

15)            Se for uma compra que estiver sendo realizada em um supermercado, o caixa encaminhará o cliente para uma “entidade superior” que ligará para o SAC (serviço para SACanear cliente). Vá para perto da atendente e acompanhe a ligação e verifique se ela está bem treinada.

16)            Quando o funcionário do supermercado ligar, sua atendente, depois de solicitar confirmação para todos os dados impressos no cartão, deve aconselhá-lo a assumir uma postura de desconfiança para com o cliente porque os computadores estão informando que o limite excedeu e .... bem, deixe ela dizer qualquer coisa. Isto agora não importa.

17)            Quando o funcionário informar ao cliente que a autorização foi negada, o cliente, como qualquer cliente, vai ficar.. digamos... puto , deixe pra lá, ele não tem razão alguma para agir agressivamente. “E na frente de outros clientes!? Que papelão!” Na verdade ele está pagando o maior mico mas isto faz parte do jogo. Deixe que o cliente extravase com a atendente.

18)            Mas verifique se sua atendente tem o cuidado de, antes de deixá-lo falar, pedir que o cliente repita os dados que estão impressos no cartão. Depois de confirmar mais uma vez que o cliente é mesmo o cliente, ela deve informar que a autorização está sendo negada pelos computadores. Atenção: é importante que ela o faça com um certo tom de “qualé, cara, querendo dá uma volta na gente?” Se ela não o fizer, chame-lhe a atenção. Relembre-a de que clientes são inimigos em potencial e que clientes que excedem seus limites são, antes de mais nada, muito suspeitos.

19)            Antes do próximo passo, é importante lembrá-lo de que o cartão de que estamos falando é um “co-brand” e que quando houve a negociação com aquele banco do brasil, ficou estabelecido que o crédito só seria transferido para você 48 horas depois do débito na conta do cliente. Esta medida foi necessária para que o seu parceiro “co” também possa ganhar algum em cima. Em cima do dinheiro do cliente.

20)            Voltemos à conversa com o cliente. Se ele argumentar que a conta foi paga pelo sistema de débito automático, na quinta-feira, dia 23, e que estamos no sábado, 25, instrua sua atendente para, com a maior segurança, se sair com esta: “mas a compensação dura 2 dias úteis.”

21)            Se o cliente começar a chamar todo mundo de filho daquilo, incompetente, esbravejar, cuspir, rosnar e perguntar “pra quê que serve esta merda deste cartão?”, faça com que ela passe a ligação para uma “instância superior”, o supervisor.

22)            O supervisor deve tratar o cliente da mesma forma, falar com o mesmo tom de “qualé” e, importantíssimo, deve obrigar o cliente a repetir os dados do cartão novamente.

23)            Agora o supervisor deve ter uma conversa com o funcionário do supermercado longe dos ouvidos do cliente. Cuidado, o cliente não deve, de maneira nenhuma, ouvir a conversa entre os dois. Ele não pode saber como realmente é tratado pelo “sistema”.

24)            Confiando na informação do funcionário de que o cliente não parece ser caloteiro (“mas, sei lá supervisor, ninguém tem letreiro na testa, não?”), o supervisor responde que vai pedir uma autorização especial a uma instância ainda mais superior, o gerente, mas que isto vai levar uns 15 minutos.

25)            O ciclo se completa. O cliente se conscientiza de que o serviço de cartão de crédito se comoditizou. Que no mundo atual, todas as lojas trabalham com todos os cartões. Que a única coisa que os diferencia é a relação que estabelecem com seus clientes. Uns o mandam “a”, outros “para”.

26)            Enquanto o cliente espera, sentado, humilhado, puto da vida, ele toma a decisão pela qual você tanto arduamente trabalhou. Ele promete a si mesmo não usar mais o seu cartão de crédito, mesmo sabendo que acabou de pagar aquela taxa anual escorchante para a bolsa da viúva. Talvez ele mude para a “corporation” concorrente, talvez não. Talvez ele prometa só gastar o que tiver no bolso ou no banco para nunca mais ser tratado como escória.

27)            Mas o melhor de tudo vem agora. A caminho de casa, a indignação do cliente vai aumentar. E se você tiver sorte, ele vai tomar uma outra decisão: escrever e divulgar a sua história.

28)            Será a glória. Você terá atingido todos os seus objetivos. Para coroar o seu trabalho, só faltará se inscrever no Top de Marketing e no Marketing Best. E pode ter certeza que todos nós estaremos torcendo por você.

29)            Boa sorte!

 

Paulo Vogel

 

Rio, 2005