EXTRATO DE: Um defeito de cor

Autora: :Ana Maria Gonçalves

Ed. Record - 2013

 

Uma obra que mistura realidade (com base em relatos manuscritos encontrados na Bahia) e ficção (a autora preenche os vazios a partir de pesquisas em documentos arquivados em instituições diversas e obras de historiadores).

 

Relatos da personagem Kehinde.

 

 

Apenas Negócios

 

 

Às vezes eu ficava um pouco constrangida por me relacionar com mercadores de escravos, mas logo esquecia, já que aquele não era problema meu. Eu não conseguiria resolvê-lo mesmo se quisesse, e também não poderia ficar com muitos escrúpulos depois de fornecer armas para o rei Guezo, sabendo que seriam usadas em guerras que fariam escravos, quase todos mandados para o Brasil. Muitas vezes vi passar os exércitos tribais ou os reais, indo para as guerras ou voltando delas. Dava para saber se eram vencidos ou vencedores pelas caras, pela quantidade de sobreviventes e também pelo que carregavam. Em fuga, os perdedores pegavam apenas os bens mais valiosos e punham fogo no resto. Os vencedores se apossavam de tudo que podiam, o que restava nas casas, nos celeiros e nas lavouras, além das cabeças dos guerreiros mortos, que eram compradas pelo rei, assim como os capturados vivos, que seriam feitos escravos, obedecendo a uma interessante divisão. Parte deles era doada para os chefes militares e ministros, outra parte era reservada para o rei, para servi-lo ou para serem usadas em sacrifícios, e o restante era trocado por mercadorias ou vendido aos tumbeiros. Como bem dizia o Fatumbi, infelizmente a vida era assim mesmo e cada um que cuidasse de si, já que diretamente eu não estava fazendo mal a ninguém. Se eu n vendesse as armas, outras pessoas venderiam e as guerras iam continuar existindo, como sempre tinham existido. Eu só n tinha coragem de comprar e vender gente, porque já tinha sentido na pele como era passar por tal situação, embora muitos retornados fizessem isso sem remorso algum. Mas o comercio com armas, que só era menos lucrativo que o de escravos, eu e o John fizemos por um bom tempo, enquanto buscávamos outros tipos de negocio. O bom era que tínhamos pagamento garantido, pois o rei não podia correr o risco de perder seus fornecedores. Duas ou três vezes por anjo o John ia até Freetown, se abastecia com o que os ingleses tinham para vender e voltava, acompanhando o carregamento até Abomé. Ela não gastava mais que dois meses em cada viagem, e tínhamos um lucro maior que em um ano inteiro vendendo outras mercadorias.

 

Uma coisa que também me consolava ao vender armas era que havia muitos escravos aprisionados em guerra nenhuma, vendidos ou doados pelas próprias famílias. Alguns desses embarcavam felizes, como algumas vezes presenciei. Eles eram saudados e incentivados por aqueles que tinham retornado contra a vontade, os que tinham sido expulsos da Bahia depois das rebeliões. Alguns retornados à força morriam de saudade e dariam a vida para voltar, e não eram poucos os que trocavam uma vida de liberdade em África por outra de escravidão no Brasil Quando eu estava de repouso, tanto na casa da Nourbesse como na minha, recebi visitas de brasileiros que gostavam de contar suas histórias. Muitos dos que foram obrigados a retornar, principalmente os que já eram libertos no Brasil e viviam em boas condições, tinham raiva da áfrica. Geralmente eram mais instruídos e não tinham se conformado com a condição de escravos, lutando até conseguirem sair dela, e se viam de volta a um lugar atrasado, ao qual não conseguiam mais se acostumar. Em muitos casos, antes de serem mandados para o Brasil, tinham pertencido a boas famílias africanas, pelas quais tinham sido traídos, e por isso não pensavam em procurá-las na volta. Ou até pensavam, para se vingar. Era mito comum serem embarcados filhos reis ou de chefes tribais que poderiam ameaçar o trono de algum herdeiro menos conceituado e mais ambicioso. Para que não criassem problemas na sucessão, os meninos ou rapazes eram vendidos ou dados aos mercadores de escravos, que não faziam qualquer distinção entre nobres e súditos. Essa também era uma boa maneira de uma tribo se livrar dos maus elementos, os que tinham costume de roubar, matar, enganar, mentir, se deitar com a mulher alheia ou não pagar dívidas. Também eram doadas para seguirem como escravas as crianças de casais que tinham muitos filhos e nenhuma condição de alimentá-los, principalmente nas épocas de crises e de guerras, quando se produzia muito pouco. Portanto, escravos não eram apenas os de guerra, não eram apenas os capturados quando se fazia uso das armas ou da munição que eu e o John vendíamos para o rei. Em muitas tribos do interior, os pais ficavam sabendo das boas condições de vida de muitos dos retornados e faziam muito gosto quando os tangomaus apareciam por lá, pois tinham oportunidade de fazer com que seus filhos também se tornassem brasileiros. O José Joaquim me contou casos de pais que viajavam vários dias só para abandonarem os filhos na porta do forte, para que fossem capturados. Quando não havia ninguém por perto, ele tentava convencê-los a não fazer aquilo, mas muitos não acreditavam na palavra dele e insistiam, dizendo que durante muito tempo tinham economizado dinheiro para fazer a viagem da aldeia onde moravam até Uidá, e queriam mandar os filhos para que eles retornassem cheios de riquezas e cuidassem da velhice deles.

 

Lagos

 

(4º parágrafo)

 

Uma das coisas que mais estranhei em Lagos foi que havia muitos missionários pretos ou mulatos, instruídos em Freetown, o que não acontecia entre os missionários ou padres franceses e brasileiros, todos brancos ou mulatos que se passavam por brancos. Eu me lembro de ouvir o John falando que em Freetown até mesmo escravos podiam ser missionários, e perguntei ao padre Clement por que não conhecia pessoalmente nenhum missionário católico ou padre preto, mas que havia, como havia até um ex-escravo que tinha se tornado santo por ordem de um papa também chamado Clemente, o São Benedito. Sobre São Benedito eu já sabia, mas fiquei muito espantada com o que ouvi logo depois, que em uma época não muito distante da nossa, os religiosos europeus se perguntavam se os selvagens da África e os indígenas do Brasil podem ser considerados gente. Ou seja, ele tinha dúvida se nós éramos humanos e se podíamos ser admitidos como católicos, se conseguiríamos pensar o suficiente para entender o que significava tal privilégio. Eu achava que era só no Brasil que os pretos tinham que pedir dispensa do defeito de cor para serem padres, mas vi que não, que em África também era assim. Alias, em África, defeituosos deviam ser os brancos, já que aquela era a nossa terra e éramos em maior numero. O que pensei naquela hora, mas não disse, foi que me sentia muito mais gente, muito mais perfeita e vencedora que o padre. Não tenho defeito algum e, talvez para mim, ser preta foi e é uma grande qualidade, pois se fosse branca não teria me esforçado tanto para provar do que sou capaz, a vida não teria exigido tanto esforço e recompensado com tanto êxito. Eu me sinto muito mais orgulhosa de ter nascido Kehinde do que sentiria se tivesse nascido padre Clement, um bom homem, com certeza, mas que se submetia à necessidade de agradar aos brasileiros ricos de Lagos, Porto Novo e Uidá para se estabelecer com segurança e conforto nessas cidades. No início, ele só se aproximou de mim porque ficou sabendo que eu tinha influencia e dinheiro, e depois porque percebeu que na minha casa sempre se comia, bebia e fuma do que havia de melhor. Comidas do Brasil, vinhos da França, da Itália e de Portugal, cervejas da Inglaterra, charutos da Bahia e de cuba. Depois de algum tempo ele passou a gostar de mim, da minha companhia, de conversar comigo, mesmo eu não sendo das cristãs mais devotas. Acho que sou melhor do que ele, que imaginava ter me enganado a princípio. Sou melhor por tê-lo aceitado interesseiro e ter dado chance para um outro tipo de sentimento, quase amizade, mesmo que nascida do isolamento em que nos encontrávamos, sem muitas opções. Fosse em outro lugar, mesmo na Bahia, por exemplo, talvez nem trocássemos uma só palavra.