EXTRATO DE: TRATADO DA
NATUREZA HUMANA
Autor: David Hume
(1711/1776)
Ed. Unesp –
1738/2000/2022
Outras obras de
Hume: Investigação sobre o entendimento humano (148), Investigação sobre os
princípios da moral (1751) e Dissertação sobre as paixões (1757).
15 – nota de rodapé
Tácito (cerca de
21
A lógica, a moral, a crítica e a política, são as
quatro ciências que compreendem quase tudo que possamos ter algum interesse em
conhecer, ou quase tudo que possa servir para aperfeiçoar ou adornar a mente
humana.
Não somo capazes de
formar uma ideia correta do sabor de um abacaxi sem tê-lo realmente provado.
[Isto não se confirma entre as crianças e os jovens.]
As impressões de
reflexão antecedem apenas suas ideias correspondentes, mas são posteriores às
impressões de sensação, e delas derivadas.
Ao nos lembrarmos
de um acontecimento passado, sua ideia invade nossa mente com força, ao passo
que, na imaginação, a percepção é fraca e lânguida, e apenas com muita
dificuldade pode ser conservada firme e uniforme pela mente durante um período
considerável de tempo.
Quando uma pessoa
possui um certo poder, nada mais é necessário para convertê-lo em ação que o
exercício da vontade (...) especialmente no caso da autoridade, em que a
obediência do súdito é um prazer e uma vantagem para seu superior.
(...) as sete
classes gerais que podemos considerar as fontes de toda a relação filosófica
(ou sete tipos de relação filosófica):
51
PARTE 2 – DAS IDEIAS DE
ESPAÇO E TEMPO
É das respectivas
disposições dos filósofos e de seus discípulos que nasce aquela mútua
complacência entre eles, em que os primeiros fornecem uma abundância de
opiniões estranhas e inexplicáveis, enquanto os últimos nelas acreditam com
enorme facilidade.
Nada
jamais parecerá extenso se não for visível ou tangível.
A verdadeira perfeição de algo consiste em sua
conformidade com seu critério.[verdade]
Podemos estabelecer
como uma máxima geral nessa ciência da natureza humana que, sempre que há uma
relação estreita entre duas ideias, a mente apresenta uma forte tendência a
confundi-las, e a usar uma em lugar da outra em todos os seus discursos e
raciocínios.
[A união entre
ideias parte de 3 princípios:] semelhança, contiguidade e causalidade.
Nada
jamais está presente à mente além de suas percepções.
97 – PARTE 3 – DO
CONHECIMENTO E DA PROBABILIDADE
Todas
as nossas ideias são copiadas de nossas impressões.
Todos os tipos de
raciocínio consistem apenas em uma comparação e uma descoberta das relações,
constantes ou inconstantes, entre dois ou mais objetos.
Quando, pela
observação e experiência, descobrimos que [a relação entre dois ou mais
objetos] é invariável, sempre concluímos haver alguma causa secreta que os
separa ou une. (...) Sempre que descobrimos uma semelhança tão perfeita,
examinamos se essa semelhança é comum nessa espécie de objeto; e se é possível
ou provável que alguma causa tenha produzido a mudança e a semelhança. Nosso
juízo a respeito da identidade do objeto será formulado de acordo com a
conclusão acerca dessas causas e efeitos.
Não existe nada que não deva ser considerado uma
causa ou um efeito.
Nenhum objeto pode
atuar em um momento ou lugar afastados, por menos que seja, do momento e luta
de sua própria existência. Embora algumas vezes possa parecer que objetos
distantes produzem uns aos outros, descobrimos ao examiná-los que estão ligados
por uma cadeia de causas contíguas entre si e em relação ao objeto distante.
Por que razão afirmamos ser necessário que tudo
aquilo cuja existência tem um começo deva também ter uma causa? [Só
o “primeiro” efeito não teve causa.]
Toda certeza provém
da comparação de ideias e da descoberta de relações que permanecem inalteráveis
enquanto as ideias continuamente iguais.
Por que concluímos
que causas particulares devem necessariamente ter efeitos particulares, e por
que realizamos uma inferência daquelas para estes últimos?
Mesmo supondo que
impressões se apaguem inteiramente de nossa memória, a convicção por elas
produzida pode ainda permanecer.
Acho que me lembro
de tal acontecimento, diz alguém, mas não tenho certeza. Um longo intervalo de
tempo quase o apagou de minha memória, e não sei dizer se é ou não um mero
produto de minha fantasia.
Quando penso em
Deus, quando penso nele como existente, e quando creio que ele existe, minha
ideia dele não aumenta nem diminui. Mas, como é certo que há uma grande
diferença entre a simples concepção da existência de um objeto e a crença
nesta, como tal diferença não repousa nas partes ou na composição da ideia que
concebemos, segue-se que ela deve estar na maneira como a concebemos. [Está no
DNA.]
Em todos os casos
que discordamos de alguém, nós concebemos ambos os lados da questão; mas, como
só podemos crer em um deles, segue-se evidentemente que a crença deve produzir
alguma diferença entre a concepção a que damos nosso assentimento e aquela de
que discordamos.
Os supersticiosos
têm grande estima por relíquias de santos e beatos, e a razão disso é a mesma
que os leva a buscar emblemas e imagens, ou seja, para intensificar sua devoção
e formar uma concepção mais intima e forte daquelas vidas exemplares, que tanto
desejam imitar.
Sempre transferimos
nossa experiência a ocorrências de que não tivemos experiência, expressa ou
tacitamente, direta ou indiretamente.
A semelhança tem
uma influência igual ou análoga à da experiência. (...) segue-se que toda
crença resulta da associação de ideias (...).
Não há fraqueza
mais universal e manifesta na natureza humana que aquilo que comumente chamamos
de CREDULIDADE, ou seja, uma fé demasiadamente fácil no testemunho alheio. (...) Possuímos uma notável propensão a crer
em tudo que nos é relatado, mesmo no caso de aparições, encantamentos e
prodígios, por mais contrários que sejam à experiência e à observação diárias.
A
crença é uma ato da mente decorrente do costume.
[Quando católicos
hipocritamente desviam o olhar das atrocidades cometidas em nome de sua
religião] Tudo que podemos dizer para desculpar tal incoerência é que eles não
crêem realmente naquilo que afirmam a respeito de uma existência póstuma. Aliás,
a melhor prova disso é essa própria incoerência.
Estou persuadido de
que, se examinarmos as opiniões que predominam entre os homens, veremos que
mais da metade delas se deve à educação, e que os princípios abraçados desse
modo implícito superam os resultantes do raciocínio abstrato ou da experiência.
Dificilmente os
homens irão se convencer um dia de que [as coisas] podem emanar de princípios
em aparência tão insignificantes, e que a maior parte de nossos raciocínios,
juntamente com todas as nossas ações e paixões, podem ser derivados
simplesmente do costume e do hábito.
É difícil recusar
nosso assentimento àquilo que é retratado com todas as cores da eloquência.
(...) Somos arrebatados pela viva imaginação daquele que lemos ou ouvimos; e
este último, por sua vez, é frequentemente vítima de seu próprio entusiasmo e
genialidade. [engodo]
Entendo
por conhecimento a certeza resultante da comparação de ideias.
Probabilidade
é a evidência que ainda se faz acompanhar de incerteza.
O acaso é meramente a
negação de uma causa.
Como o costume não
depende de uma deliberação, ele opera imediatamente, sem dar tempo à reflexão.
É sempre o efeito
mais comum que consideramos como o mais provável. Há aqui, portanto, duas
coisas a examinar: as razões que nos determinam a fazer do passado um padrão
para o futuro, e a maneira como extraímos um juízo de uma contrariedade de
acontecimentos passados.
[À medida que um
evento traumático se afasta no tempo, a sensação de repetição se esvai na
memória.]
Não
há história ou tradição que não deva acabar por perder toda sua forca e
evidência.
Embora o hábito
perca parte de sua força a cada diferença, é raro que ele seja completamente
destruído quando circunstâncias importantes permanecem iguais.
Qualquer coisa pode
produzir qualquer coisa. Criação, aniquilação, movimento, razão, volição –
todas essas coisas podem surgir umas das outras ou de qualquer outro objeto que
possamos imaginar.
Nenhum
objeto é contrário a outro, senão a existência e a não-existência.
[Para Hume] a mesma
causa sempre produz o mesmo efeito e o esmo efeito jamais surge senão da mesma
causa.
209 – SEÇÃO 16 – DA
RAZÃO DOS ANIMAIS
Nenhuma verdade me
parece mais evidente que a de que os animais são dotados de pensamento e razão,
assim como os homens.
213 – PARTE 4 – DO
CETICISMO E OUTROS SISTEMAS FILOSOFICOS
A filosofia nos
informa que tudo que aparece à mente não é senão percepção, e possui uma
existência descontinua e dependente da mente; o vulgo, ao contrário, confunde
percepções e objetos, atribuindo uma existência distinta e contínua às próprias
coisas que sente ou vê. Esta opinião, portanto, por ser inteiramente irracional
tem que proceder de uma outra faculdade que não o entendimento.
Quando fixamos
nosso pensamento em um objeto e supomos que continua o mesmo durante algum
tempo é evidente que estamos supondo que a mudança se dá apenas no tempo e
nunca nos empenhamos em produzir uma nova imagem ou ideia do objeto.
Uma interrupção na
aparição aos sentidos não implica necessariamente uma interrupção na
existência.
Percebemos com
clareza que todas as nossas percepções dependem de nossos órgãos e da
disposição de nossos nervos e espíritos animais.
Há uma grande
diferença entre as opiniões que formamos após uma reflexão serena e profunda e
as que abraçamos por uma espécie de instinto ou impulso natural, em virtude de
sua adequação e conformidade com a mente.
Basta que os
filósofos digam, de qualquer fenômeno que os embaracem, que este deriva de uma
faculdade ou de uma qualidade oculta, e acabam-se todas as disputas e
investigações sobre o assunto.
A natureza humana
possui uma notável inclinação a atribuir aos objetos externos as mesmas emoções que observa em si própria; e a enxergar em
todo lugar aquelas ideias que lhe estão mais presentes. É verdade essa
inclinação se elimina por uma pequena reflexão e só persiste nas crianças, nos
poetas e nos filósofos antigos. Nas crianças, aparece, por exemplo, em seu
desejo de bater nas pedras que as ferem; no poetas, na facilidade com que
personificam todas as coisas; e os filósofos antigos, nessas ficções da
simpatia e da antipatia. Devemos perdoar as crianças porque têm pouca idade; os
poetas, porque admitem seguir, sem reservas, as sugestões de sua fantasia. Mas
que desculpa encontraremos para justificar nossos filósofos em uma fraqueza tão
evidente?
A
ideia de movimento supõe necessariamente a de um corpo que se move.
A ideia de solidez é a de dois objetos que,
mesmo impelidos por uma força extrema, não conseguem penetrar um no
outros,mantendo, ao contrário, uma existência separada e distinta. uip
Não
possuímos ideia perfeita de nada senão de percepções.
O movimento não
acarreta nenhuma mudança real ou essencial nos corpos, apenas alterando sua
relação com outros objetos.
Podemos concluir
com certeza que o movimento pode, e de fato é, a causa do pensamento e da
percepção.
A conjunção
constante entre os objetos constitui a essência mesma da causa e efeito, a
matéria e o movimento podem, em muitas ocasiões, ser considerados as causas do
pensamento, até onde podemos ter alguma noção dessa relação.
Quando minhas percepções são suprimidas por algum
tempo como ocorre no sono profundo, durante todo esse tempo fico insensível a
mim mesmo, e pode-se dizer verdadeiramente que não existo.
A mente é uma
espécie de teatro, onde diversas percepções fazem sucessivamente sua aparição;
passam, repassam, esvaem-se, e se misturam em uma infinita variedade de
posições e situações.
Lorde Shaftesbury em Moralists ou Phisophical thapsody: (...)
princípio unificador do universo (...) uip
Como a natureza de
um rio consiste no movimento e na mudança das partes, embora em menos de vinte
e quatro horas estas estejam totalmente alteradas, isso não impede que o rio
continue o mesmo durante várias gerações. uip
A
identidade que atribuímos à mente humana
é apenas fictícia (...).
O que é memória
senão a faculdade pela qual despertamos as imagens de percepções passadas?
Uma pessoa pode
variar seu caráter e disposição, bem como suas impressões e ideias, sem perder
sua identidade.
Quando volto meu
olhar para dentro de mim mesmo, não encontro senão dúvida e ignorância. O mundo
inteiro une-se contra mim e me contradiz; mas minha fraqueza é tal que sinto
todas as minhas opiniões se desagregarem e desmoronarem por si mesmas, quando
não suportadas pela aprovação alheia. [Sempre] temo encontrar
um erro e um absurdo em meu raciocínio.
Não nos damos conta
de que, nas conjunções mais usuais de causa e efeito, somos tão ignorantes
sobre o princípio último que une a causa e o efeito quanto nas mais insólitas e
extraordinárias. (...) Nada é mais perigoso para a razão que os vôos da
imaginação, a maior causa de erro entre os filósofos.
A visão intensa das
variadas contradições e imperfeições da razão humana me afetou de tal maneira,
e inflamou minha mente a tal ponto, que estou prestes a rejeitar toda crença e
raciocínio, e não consigo considerar uma só opinião como mais provável ou
verossímil que as outras. Onde estou, o que sou? De que causas derivo minha
existência, e a que condição retornarei. De quem o favor deverei cortejar, a
ira de quem devo temer? Que seres me cercam? Sobre quem exerço influencia, e
quem exerce influencia sobre mim? Todas essas questões me confundem, e começo a
me imaginar na condição mais deplorável, envolvido pela mais profunda
escuridão, e inteiramente privado do uso de meus membros e faculdades.
Que obrigação tenho
de fazer um tão mau uso de meu tempo? E a que fim isso
pode servir, seja em prol da humanidade, seja em próprio interesse?
Não posso deixar de
sentir curiosidade sobre os princípios morais do bem e do mal, a natureza e o
fundamento do governo, e a causa das diversas paixões e inclinações que me
movem e governam.
Os
erros da religião são perigosos; os da filosofia, apenas ridículos.
A Natureza Humana é
a única ciência do homem; entretanto, até aqui tem sido a mais negligenciada.
307
[Este tratado é]
Uma tentativa de introduzir o método experimental de raciocínio nos assuntos
morais.
Impressões
originais e secundárias.
Quando uma pessoa
adquire sobre mim uma autoridade tal que, não somente não há obstáculos
externos às suas ações, mas, além disso, ela pode me punir ou me recompensar
como quiser, sem medo de ser ela própria punida por isso, nesse caso
atribuo-lhe um total poder, e me considero súdito ou vassalo.
E mesmo que eu
jamais venha de fato a ser prejudicado e acabe descobrindo que, filosoficamente
falando, a pessoa nunca teve o poder de me prejudicar, já que não o exerceu,
isso não impede meu mal-estar, em decorrência da incerteza anterior.
435 – PARTE 3 – DA
VONTADE E DAS PAIXOES DIRETAS
Paixões
diretas: desejo e aversão, tristeza e alegria, esperança e medo.
Os homens não podem
viver sem sociedade, e não podem se associar sem governo. [E como ficam as
sociedades indígenas?]
Como nada nos
interessa tanto quanto nossas próprias ações e as dos outros, a maior parte de
nossos raciocínios é empregada em juízos a respeito delas. (...) Os
atos da vontade decorrem da necessidade.
491 – LIVRO 3 – Da
Moral
Lucano (poeta romano, 39-65): “Tu, que desde
sempre foste amante da austera virtude, pergunta em que consiste essa virtude,
indaga qual o modelo da honradez”.
Advertência:
Observe-se que
continuo a empregar os termos impressões e ideias no mesmo sentido que
anteriormente, e que, por impressões, refiro-me às nossas percepções mais
fortes, tais como nossas sensações, afetos e sentimentos; e por ideia, às
percepções mais fracas, ou cópias daquelas na memória e na imaginação.
517 - Parte 2 – Da
justiça e da injustiça
Somente pela
sociedade o homem é capaz de suprir suas deficiências, igualando-se às demais
criaturas, e até mesmo adquirindo uma superioridade. (...) A conjunção de
forças amplia nosso poder; a divisão de trabalho aumenta nossa capacidade; e o
auxilio mutuo nos deixa menos expostos à sorte e aos acidentes. É por essa
força, capacidade e segurança adicionais que a sociedade se torna vantajosa.
(...) sou da
opinião de que, embora seja raro encontrar alguém que ame uma pessoa sequer
mais que a si mesmo, é igualmente raro
encontrar alguém em quem todos os afetos benévolos, considerados em conjunto,
não superem os egoístas. UIP
Os bens que
possuímos podem ser de 3 espécies diferentes: a satisfação interior do
espírito, as qualidades exteriores de nosso corpo e a fruição dos bens que
adquirimos com nosso trabalho e nossa boa sorte.
(...) será de meu
interesse deixar que outra pessoa conserve a posse de seus bens, contanto que
ela aja da mesma maneira em relação a mim. (...) Dois homens que estão a remar
um mesmo barco fazem-no por um acordo ou convenção, embora nunca tenham
prometido nada uma ao outro.
Uma vez firmada a
convenção sobre a abstinência dos bens alheios, e uma vez todos tendo adquirido
uma estabilidade em suas posses, surgem imediatamente as ideias de justiça e de
injustiça, bem como as de propriedade, direito e obrigação.
535
Podemos facilmente
concluir que, se os homens dispusessem de tudo com a mesma abundância, ou se
todos tivessem por todos a mesma afeição e terna consideração que têm pos si
mesmos, a justiça e a injustiça seriam igualmente desconhecidas do homem.
O sentido de justiça, portanto, não se funda
em nossas ideias, mas em nossas impressões.
544
Aquilo que há muito
está sob nossos olhos, e tem sido frequentemente usado em nosso beneficio, é isso
que mais relutamos em abandonar; mas podemos
facilmente viver sem os bens de que nunca usufruímos e a que não estamos
acostumados.
Nenhuma questão
filosófica é tão difícil quanto estabelecer, dentre um grande número de causas
que se apresentam para um mesmo fenômeno, qual a principal e predominante.
Uma qualidade que
já observei na natureza humana é que, quando dois objetos apresentam uma
relação estreita, a mente tende a atribuir-lhes uma relação adicional, para
completar a união; (...)
549
Adquirimos a
propriedade sobre os objetos por acessão, quando estão estreitamente conectados
com outros objetos que já são de nossa propriedade e, ao mesmo tempo, são
inferiores a estes.
565
As três leis
fundamentais do direito natural: a da estabilidade da posse, a de sua
transferência por consentimento e a do cumprimento de promessas.
Podemos observar
que vícios e virtudes de todos os tipos mudam-se insensivelmente uns nos
outros, podendo se aproximar por graus tão imperceptíveis que se torna difícil,
senão absolutamente impossível, determinar quando o vício termina e começa a
virtude, ou vice-versa; (...)
A
obrigação e a propriedade dependem inteiramente da justiça e da injustiça
(...).
Os juizes que são
obrigados a dar uma sentença decisiva a favor de apenas uma das partes,
frequentemente sentem-se confusos, sem saber como determinar a questão, tendo
então de proceder com base nas mais frívolas razoes desse mundo.
Devemos considerar
que essa distinção entre a justiça e a injustiça tem dois fundamentos
diferentes: o do interesse próprio, quando os homens observam que é impossível
viver em sociedade sem se restringir por meio de certas regras; e o da
moralidade, quando já se observou que esse interesse próprio é comum a toda a
humanidade, e os homens passam a ter prazer em contemplar ações que favorecem a
paz da sociedade, sentindo um desconforto diante daquelas que são contrárias a
ela.
573
Nada é mais certo
que o fato de que os homens são, em grande medida, governados pelo interesse,
e, mesmo quando estendem suas preocupações para além de si mesmos, não as levam
muito longe; na vida corrente, não é muito comum olhar para além dos amigos
mais próximos e dos conhecidos.
[Temos]
a propensão para o que está contíguo, em detrimento do que está distante. Portanto
somos naturalmente levados a cometer atos de injustiça. [O teu modo de agir] me
impele nessa mesma direção, por imitação, e ao mesmo tempo me dá mais uma razão
para violar a equidade, ao me mostrar que eu seria um tolo se me ativesse à
minha integridade, se fosse o único a impor a si mesmo severas restrições, em
meio à licenciosidade de todos os demais.
(...) se os homens
por si mesmos, são incapazes de preferir o distante ao contíguo, nunca
consentirão em nada que os obrigue a uma tal escolha e que contradiga de
maneira tão sensível seus princípios e propensões naturais. Aquele
que escolhe os meios escolhe também os fins; e se nos é impossível preferir o distante, é-nos igualmente
impossível nos submeter a qualquer necessidade que nos obrigue a um tal modo de
agir.
576
(...) como é
impossível mudar ou corrigir algo importante em nossa natureza,
o máximo que podemos fazer é transformar nossa situação e as circunstâncias que nos envolvem, tornando a observância
das leis da justiça nosso interesse mais próximo, e sua violação, nosso
interesse mais remoto. Mas como isso é impraticável com respeito a toda a
humanidade, só pode funcionar relativamente a umas poucas pessoas, em quem
criamos um interesse imediato pela execução da justiça. São essas pessoas que
chamamos de magistrados civis, reis e seus ministros, nossos governantes e
dirigentes, que, por serem indiferentes à maior parte da sociedade, não têm
nenhum interesse ou têm apenas um remoto interesse em qualquer ato de
injustiça; (...) Eis, portanto, a origem do governo e da obediência civil.
(...) Os homens não podem mudar suas naturezas. Tudo que podem fazer é mudar
sua situação, tornando a observância da justiça o interesse imediato de algumas
pessoas particulares, e sua violação, seu interesse mais remoto.
Por meio das
vantagens que se encontram na execução e na decisão da justiça, os homens
adquirem segurança contra a fraqueza e as paixões dos demais, e também contra
as suas próprias; e, sob a proteção de seus governantes, começam a saborear confortavelmente
a parte doce da sociedade e da assistência mútua.
É muito difícil, e
na verdade até impossível, que mil pessoas se ponham de acordo em uma ação
[qualquer]; pois é difícil conceberem juntas um plano tão complicado, e ainda
mais difícil executá-lo, quando cada uma busca um
pretexto para se livrar do trabalho e dos custos, e gostaria de jogar toda a
carga sobre os outras.
Nas tribos
americanas os homens vivem em mútua harmonia e amizade, sem que haja um governo
estabelecido; e nunca se submetem a nenhum de seus companheiros, exceto em
tempos de guerra, quando seu chefe goza de leve autoridade, a qual perdem
quando retornam do campo de batalha e restabelecer a paz com as trigos
vizinhas.
(...) as repúblicas
surgem exclusivamente dos abusos da monarquia e do poder despótico. [Esta
afirmação não se aplica, a meu entendimento, à situação do Brasil, pois Dom
Pedro não abusava de seu poder monárquico, muito pelo contrário. Hume esqueceu
de seu próprio argumento fundamental do comportamento humano, qual seja o do
interesse próprio.]
(...) os homens descobriram que seria impossível
manter uma harmonia comum sem algum tipo de restrição a seus apetites naturais.
Obedecer aos
magistrados civis é necessário para a preservação da ordem e da harmonia social.
Cumprir as promessas é necessário para promover a segurança e a confiança mútua
nas tarefas comuns da vida.
O interesse pelo
cumprimento de promessas, além de sua obrigação moral, é geral, explícito e da
maior importância para a vida.
Nosso interesse
está sempre do lado da obediência aos magistrados; só uma grande vantagem
presente pode nos levar à rebelião, ao nos fazer menosprezar o interesse remoto
que temos pela preservação da paz e da ordem na sociedade.
A educação e o
artifício dos políticos concorrem para proporcionar uma moralidade adicional à
lealdade e para estigmatizar toda rebelião com um maior grau de culpa e
infâmia. Nem é de admirar que os políticos se esforcem tanto para inculcar tais
noções, já que seu interesse está tão particularmente em jogo.
(...) um excesso de
tirania por parte dos governantes é suficiente para liberar os súditos de todo
vinculo de obediência. (...) quando, em vez de proteção e segurança, as pessoas
encontram tirania e opressão, ficam liberadas de suas promessas (como acontece
em todo contrato condicional), retornando àquele estado de liberdade que
precede a instituição do governo. Os homens nunca seriam tão estúpidos a ponto
de assumir compromissos que pudessem ser vantajosos apenas aos outros, sem
nenhuma perspectiva de melhorar sua própria condição. Quem se propõe a tirar
algum proveito de nossa submissão tem de se comprometer, expressa ou
tacitamente, a nos proporcionar alguma vantagem com sua autoridade; e não deve
esperar que continuemos a lhe obedecer se não cumpre sua parte.
Existe um princípio
na natureza humana que diz que os homens se prendem fortemente a regras gerais,
e que frequentemente estendemos nossas máximas além das razões que nos levaram
a estabelecê-las pela primeira vez.
(...) sempre que o
magistrado civil leva sua opressão ao ponto de tornar sua autoridade
intolerável não temos mais obrigação de nos submeter a ele. A causa cessa; o
efeito, portanto, também deve cessar.
Quando os homens se
submetem à autoridade alheia, fazem-no para proporcionar a si mesmos alguma
segurança contra a maldade e a injustiça dos outros homens, que são
perpetuamente levados, por suas paixões desregradas e por seu interesse
presente e imediato, a violar todas as leis da sociedade.
(...)
frequentemente podemos esperar, dada a irregularidade
da natureza humana, que esses governantes irão desconsiderar até mesmo esse
interesse imediato, e que suas paixões os levarão a todos os excessos da
crueldade e da ambição.
“O governo é uma
mera invenção humana no interesse da sociedade; quando a tirania do governante
contraria esse interesse, suprime a obrigação natural da obediência.” “(...) Se
o sentido do interesse não fosse nosso motivo original para a obediência, eu
perguntaria: que outro princípio há na natureza humana capaz de subjugar a
ambição natural dos homens, forçando-os a se submeter? (...) É evidente que não
há outro princípio além do interesse; e se é o interesse que gera primeiramente
a obediência ao governo, a obrigação de obedecer tem
de cessar toda vez que cessa o interesse em um grau significativo, e em um
número considerável de casos.”
Uma vez tendo os
homens experimentado a impossibilidade de preservar uma ordem estável na
sociedade enquanto cada um é dono de si próprio, violando ou observado as leis
da sociedade de acordo com seu interesse presente ou a seu bel-prazer, eles
naturalmente inventam o governo e, tanto quanto possível, põem fora de seu
próprio alcance o poder de transgredir as regras da justiça.
Supomos
naturalmente que nascemos sob a submissão; e imaginamos que tais pessoas
particulares têm o direito de comandar, enquanto nós, por nosso lado, temos de
obedecer. Essas noções de direito e obrigação derivam unicamente da vantagem
que vemos no governo, o que nos dá uma aversão pela ideia de praticarmos nós
mesmos a resistência e nos faz sentir um desprazer quando outros a
praticam. (...) Cada pessoa tem u m
interesse privado diferente; e, embora o interesse público, em si próprio, seja
sempre o mesmo, gera grandes dissensões, em razão das diferentes opiniões que
as pessoas particulares têm dele.
(...) não há quase
nenhuma linhagem de reis ou comunidade política que não tenha sido primeiro
fundada na usurpação e na rebelião, e cujo direito não tenha sido de início
mais que duvidoso e incerto. (...) Nada faz um sentimento ter sobre nós um
objeto determinado, que o costume. (...) É o interesse que produz o instinto
geral, mas é o costume que imprime a ele uma direção particular.
(...) temos que
admitir que na esfera pública o direito do mais forte deve ser aceito como
legítimo, sendo autorizado pela moral, quando não se opõe a nenhum outro
direito.
O direito de
conquista se parece muito com o da posse atual; porém tem uma força superior,
uma vez que é apoiado pelas noções de glória e honra que atribuímos aos
conquistadores, em vez dos sentimentos de ódio e execração que acompanham os
usurpadores.
O poder
legislativo, tem de ter sido estabelecido por um contrato original, pela posse
prolongada, pela posse atual, pela conquista ou pela sucessão.
[Precisamos ter a]
noção de leis fundamentais, que são consideradas inalteráveis pela vontade do
soberano.
Quem examinar a
história das diversas nações do mundo (...) logo aprenderá a não dar tanta
importância às disputas concernentes aos direitos dos príncipes, e se
convencerá de que uma rígida adesão a regras gerais e a obediência estrita a
pessoas e famílias particulares, a que alguns dão tanto valor, são virtudes que
têm menos de razão que de fanatismo e superstição. Por esse aspecto, o estudo
da história confirma os raciocínios da verdadeira filosofia, que, ao nos
mostrar as qualidades originais da natureza humana, ensina-nos a ver as
controvérsias políticas como impossíveis de solucionar na maioria dos casos, e
como inteiramente subordinadas aos interesses da paz e da liberdade.
Quando os direitos
se misturam e se opõem em diferentes graus, frequentemente causam perplexidade;
e são menos suscetíveis de ser solucionados pelos argumentos de juristas e
filósofos que pela espada dos soldados.
No caso de uma
tirania e opressão atroz, é legítimo pegar em armas, mesmo contra o poder
supremo; e que, como o governo é uma mera invenção humana como o objetivo de
proporcionar um mútuo benefício e segurança às pessoas, deixa de impor uma
obrigação, natural ou moral, quando não tem mais essa tendência.
É certo que, em
meio à imensa variedade de circunstâncias que se apresentam em todos os
governos, um exercício particular do poder por um magistrado tão importante
pode ser ora benéfico para o público, ora nocivo e tirânico.
Quando o magistrado
supremo (...) pretende usurpar as prerrogativas de outras autoridades e
estender seu poder para além dos limites legais, é permitido resistir a ele e
depô-lo, embora essa resistência e violência possam, no teor geral das leis,
ser consideradas ilegais e subversivas.
Aqueles que afirmam
respeitar a liberdade de nosso governo, mas negam o direito de resistência,
renunciam a qualquer pretensão ao bom-senso, e não merecem uma resposta séria.
607
(...) (a estabilidade
da posse, sua transferência por consentimento e o cumprimento das promessas)
são deveres tanto de príncipes como de súditos. (...) Ali onde a posse não tem
estabilidade, certamente haverá uma guerra perpétua. Onde a propriedade não é
transferida por consentimento, não pode haver comércio. Onde as promessas não
são cumpridas, ligas ou alianças não podem existir.
Existe uma máxima,
um mito comum em nosso mundo, que poucos políticos querem admitir, mas que é
referendada pela prática de todas as épocas: que há um sistema de moral
concebido especialmente para os príncipes, e muito mais livre que aquele que
deve governar as pessoas privadas. (...) O sentido dessa máxima política é,
portanto, que, embora a moral dos príncipes tenha a mesma extensão, não tem a mesma força que a
das pessoas privadas, podendo ser legitimamente transgredida por um motivo mais
fútil.
[A força da
tentação a justificar as transgressões do homem.]
613
(...) a virtude
equivale ao poder de produzir amor ou orgulho, e o vício, ao poder de produzir
vergonha ou ódio.
Nenhuma paixão
alheia se revela imediatamente à nossa mente. Somos sensíveis apenas a suas
causas ou efeitos.
Em muitos casos,
belo e atraente não são qualidades absolutas, mas relativas, e nos agradam
exclusivamente por sua tendência a produzir um fim que é agradável.
Nota de rodapé do
tradutor: o atleta cujos músculos se tornaram pronunciados graças ao exercício
físico tem o aspecto mais belo, mas também está mais bem preparado para a luta.
Na verdade, a aparência nunca está separada da utilidade.
O
meio para se obter um fim só pode ser agradável quando o fim é agradável.
618
Ninguém pode
duvidar de que muitas das virtudes naturais têm essa tendência para o bem da
sociedade. Docilidade, beneficência, caridade, generosidade, clemência,
moderação e equidade ocupam o lugar de maior destaque entre as qualidades
morais, e são comumente denominadas as virtudes sociais, para marcar sua
tendência para o bem da sociedade.
(...) tomar uma
decisão contrária às leis da justiça seria com igual frequência um exemplo de
humanitarismo tanto quanto tomar uma decisão conforme a elas. Os juizes tiram do pobre para dar ao rico; conferem ao
vagabundo os frutos do esforço do trabalhador; e põem nas mãos do depravado os
meios de causar danos a si mesmo e aos demais. Entretanto, o conjunto do
sistema do direito e da justiça é vantajoso para a sociedade e para cada
indivíduo; e foi tendo em vista esta vantagem que os homens a estabeleceram,
por meio de suas convenções voluntárias.
É certo que a
imaginação é mais afetada pelo particular que pelo geral; e é sempre mais
difícil estimular os sentimentos quando seus objetos são, em uma certa medida,
vagos e indeterminados. Ora, nem todo ato particular de justiça é benéfico para
a sociedade, mas apenas o conjunto do plano ou sistema; (...).
(...) a aprovação
das qualidades morais (...) procede inteiramente de um gosto moral e de certos
sentimentos de prazer ou desgosto que surgem da contemplação e da visão de
qualidades ou caracteres particulares.
Toleramos um certo
grau de egoísmo nos homens, porque sabemos que isso é algo inseparável da
natureza humana, e inerente à nossa estrutura e constituição.
Um orgulho
excessivo, ou uma opinião presunçosa de nós mesmos, é sempre considerado um
vício, sendo universalmente odiado; a modéstia, ao contrário, ou um justo
sentido de nossa fraqueza, é considerada uma virtude, ganhando a boa vontade de
todos.
Lucrécio ( ): ver
os rudes trabalhos por que estão passando os outros, não porque haja qualquer
prazer na desgraça de alguém, mas porque é bom presenciar os males de que não
se sofrem.
Príncipe de Conde:
Alexandre, o Grande, estivesse na Europa ou na Ásia, entre gregos ou persas,
pouco lhe importava: onde quer que achasse homens, imaginava ter encontrado
súditos.
Podemos observar,
de maneira geral, que tudo o que chamamos de virtude heróica e admiramos como
marca de grandeza e altivez espiritual não é senão um firme e bem estabelecido
orgulho e auto-estima, ou ao menos tem muito dessa paixão.
(...) o orgulho nos
faz agir e, ao mesmo tempo, nos dá uma satisfação imediata.
A infinita confusão
e desordem que o heroísmo ocasionou no mundo diminuem em muito seu mérito. E
quando alguém quer se contrapor às noções populares a esse respeito, sempre
retratam os males que essa suposta virtude causou à sociedade humana. [Um
exemplo disso é como Che Guevara é visto vulgo.]
[O que vale mais
para a condução da vida com sucesso?] Uma mente lúcida ou uma inventividade
copiosa? Um gênio profundo ou um juízo seguro? Em suma, quando se pergunta que
caráter ou que tipo particular de inteligência é superior, evidentemente não
podemos dar uma resposta sem considerar qual dessas qualidades torna uma pessoa
mais capacitada para a vida e a leva mais longe em qualquer empreendimento.
Histórias de reinos
são mais interessantes que histórias domésticas; histórias de grandes impérios,
mais que de pequenas cidades e principados; e histórias de guerras e
revoluções, mais que as de tempos de paz e ordem.
660
(...) é necessário
situar os objetos mais à distância, torná-los menos visíveis, para que se
tornem mais atraentes para o olho ou para a imaginação. (...) As especulações
mais abstratas acerca da natureza humana, por mais frias e monótonas que sejam,
fazem-se instrumento da moral prática; e podem tornar esta última ciência mais
correta em seus preceitos e mais persuasiva em suas exortações.
661
APÊNDICE
A crença consiste unicamente em uma certa sensação
ou sentimento; em algo que não depende da vontade, devendo, antes, resultar de
certas causas e princípios determinados, que estão fora de nosso controle.
Considerando-se,
assim, uma verdade indubitável que a crença não é senão uma sensação peculiar,
diferente da simples concepção, a próxima questão que nos ocorre naturalmente
é: qual a natureza dessa sensação ou sentimento? Será análogo a algum outro
sentimento da mente humana?
É frequente
acontecer que, quando dois homens estiveram envolvidos em um episódio, um deles
se lembre dele muito melhor do que o outro, e tenha a maior dificuldade do
mundo para fazer que seu companheiro se lembre também.
Toda
ideia deriva de impressões anteriores.
Quando volto minha
reflexão para mim mesmo, nunca consigo perceber esse eu sem uma ou mais
percepções, e não percebo nada além de percepções. É
a combinação destas, portanto, que forma o eu.
681
SINOPSE DE UM LIVRO
RECENTEMENTE PUBLICADO....
[Uma coisa há que
admirar em Hume, sua consciência de que sua obra é praticamente ininteligível
para a maioria dos humanos. Isto ficou claro quando ele escreve um artigo
criticando/explicando sua própria obra, mas como se fosse um terceiro. Ele
assim começa o segundo parágrafo:]
A obra cujo resumo apresento aqui ao leitor foi
considerada obscura e de difícil compreensão, e sou levado a pensar que isso se
deve tanto à sua extensão quanto ao caráter abstrato da argumentação.
683/684
Se, ao examinar diversos fenômenos, descobrirmos
que eles se reduzem a um princípio comum, e formos capazes de remeter este
princípio a outro, chegaremos finalmente àqueles poucos princípios simples de
que todo o resto depende. E, mesmo que jamais possamos chegar aos princípios
últimos, já é uma satisfação ir até onde nossas faculdades nos permitem ir.
Pode-se afirmar com segurança que quase
todas as ciências estão incluídas na ciência da natureza humana, e dela
dependem. A única finalidade da lógica é explicar os princípios e as operações
de nossa faculdade de raciocínio e a natureza de nossas ideias; a moral e a crítica
dizem respeito a nossos gostos e sentimentos; e a política considera os homens
enquanto unidos em sociedade e dependentes uns dos outros. Portanto, esse
tratado da natureza humana parece ter sido projetado como um sistema das
ciências.
[Hume] denomina
percepção tudo que pode estar presente à mente, seja quando utilizamos nossos
sentidos, seja quando somos movidos pelas paixões, ou quando exercitamos nosso
pensamento e reflexão. (...) Quando refletimos sobre uma paixão ou um objeto
qualquer não está presente, essa percepção é uma ideia. Impressões, portanto,
são nossas percepções fortes e vividas; ideias são as mais fracas e pálidas.
Essa distinção é evidente, tão evidente quanto a
distinção entre sentir e pensar.
(...) todas as
nossas ideias, ou seja, nossas percepções fracas, são derivadas de nossas
impressões, ou percepções forte; e nunca podemos pensar em nada que não
tenhamos visto fora de nós, ou que não tenhamos sentido em nossa própria mente.
Não poderia haver
descoberta mais feliz para a solução de todas as controvérsias em torno das
ideias que esta: todas as impressões sempre precedem as ideias, toda ideia
contida na imaginação apareceu primeiro em uma impressão correspondente.
[deveríamos sempre
nos perguntar:] de que impressão essa pretensa ideia é derivada?
Todos os
raciocínios que empregamos em nossa vida são [resultado de um processo mental
de inferência de causa e efeito]; é neles que se funda toda a nossa crença na
história, e é deles que deriva toda a filosofia, excetuando-se a geometria e a
aritmética.
A mente sempre pode
conceber que qualquer efeito se segue de uma causa e, aliás, que
qualquer acontecimento se segue de outro;
CARTA AO EDITOR EM 8/12/22
Que enviei
apontando a tradução de um termo que leva o leitor brasileiro a não entender o
que Hume estava dizendo.
Prezado
Editor,
Estou lendo
"Tratado da natureza humana", de David Hume, uma tradução publicada
por esta editora em 2009.
Com muita humildade
(e este será o termo que vou tratar) venho apontar uma tradução do termo "humility" que considero prejudicial ao sentimento a
que o autor está se referindo.
Apesar de
"humildade"* (a opção adotada pela tradutora) ser uma das traduções
possíveis, o termo "humility" tem como
significados "submission" e "lowness", respectivamente em português,
"submissão" e "baixeza".
Dito
isto, reproduzo, como argumento do que defendo, o que Hume diz.
Na página 311, o
parágrafo 2 inicia com a seguinte afirmação: "É evidente que o orgulho e a
humildade, embora diretamente contrários (meu grifo), têm o mesmo OBJETO”.
Fica evidente,
portanto, que ele está opondo ao sentimento de orgulho um sentimento oposto, ou
seja, enquanto orgulho é algo a causar prazer, há que se opor a ele um
sentimento que cause dor. Este sentimento, absolutamente antagônico ao orgulho,
é a "vergonha".
Humildade, em nossa
cultura, é um sentimento nobre, moralmente aprovado, e não é esta interpretação
que Hume está querendo passar a seu leitor. Humildade não é o oposto de
orgulho, mas sim a não manifestação de prepotência, exaltação, vaidade etc.
Faço uma sugestão
para testar minha proposição. Faça-se uma leitura das principais passagens em
que o termo "humildade" é usado, e substitua-se por
"vergonha". Como neste trecho, página 323, parágrafo 9:
"Tudo que eu disse acerca do orgulho é
igualmente verdade em relação à vergonha. A sensação da vergonha é
desagradável, como a do orgulho é
agradável [a humildade jamais é desagradável]; (...) Assim, constatamos que uma bela casa que nos pertence produz
orgulho; e a mesma casa, ainda pertencendo a nós, produz vergonha quando, por um acidente, sua beleza se transforma em fealdade, e com
isso a sensação de prazer, que correspondia ao orgulho, é transformada em dor,
relacionada à vergonha."
Com esta
substituição, as ideias de Hume me parecem ficar em total consonância com o que
o Autor pretendia dizer.
Respeitosamente,
Paulo
F. Vogel
* Em nota de rodapé
à página