EXTRATO DE: PARA QUE SERVE A SOCIOLOGIA

Autor: Zygmunt Bauman

Ed. Zahar – 2015/2015

 

O mundo se atrofiou em histórias, não em informações, e onde as histórias são atrofiadas também o é a capacidade de homens e mulheres entenderem suas vidas num contexto histórico mais amplo.

 

A transformação de mensagens em estímulos efetivos é mediada pela recepção, seguida pela compreensão, que envolve, como regra, uma interpretação (seletiva).

 

J. M. Coetze: “As alternativas não são a servidão complacente de um lado e a revolta contra ela de outro. Há uma terceira via, escolhida por milhares e milhões de pessoas todos os dias. É o caminho do quietismo, da obscuridade voluntária, da emigração interna”.

 

Ainda Coetze: “Certamente Deus não fez o mercado – nem Deus nem o espírito da História. Se nós, seres humanos, o fizemos, não poderíamos desfazê-lo e refazê-lo de um modo mais benigno? Por que o mundo tem de ser um anfiteatro de gladiadores do tipo matar ou morrer em vez de, digamos, uma colmeia ou um formigueiro vigorosamente sinergético?”

 

Ética é prática – de articular, pregar, promover e/ou impor regras de conduta moral.

 

O caminho que leva a um mundo moral é longo, sinuoso e cheio de armadilhas – as quais, diga-se de passagem, é tarefa do sociólogo investigar e mapear.

 

A repetição precisa ser interminável, uma vez que a cortina mágica logo tece remendos, conserta rasgões e fecha os buracos com novas histórias para substituir as lendas caídas em descrédito.

 

Sou inclinado a pensar que a questão para a vida liquida moderna, incessante e desesperadamente faminta por interpretação, não é “Será que precisamos da teoria social crítica?”; essa vida, nada mais sendo que uma crítica contínua das realidade atuais, a produz de maneira incessante, espontânea e em grande escala. Sem ela, nenhuma reflexão sobre essa vida pode começar, muito menos acabar.

 

Porque conciliar o inconciliável? A onipotente e onibenevolente natureza divina com a ubiquidade por demais evidente do mal? (...) É óbvio que a evidente contradição entre a proliferação do mal e a divina ágape tem raízes na ignorância e na incompreensão humanas.

 

Desde cedo aceitei a endêmica e inevitável ambiguidade da condição humana, o impasse e o intercambio entre “destino” e “caráter” ... tentei decifrar a conduta humana como um intercâmbio e uma interação contínuos entre desafios situacionais (“objetivos”) e estratégias de vida humanas (“subjetivas”). (...) aquilo de que estou falando aqui tem no máximo a natureza de uma advertência, recomendação ou orientação heurística, e não a de um algoritmo, procurado por muitos sociólogos de modo tão apaixonado e fútil quanto os alquimistas procuravam a pedra filosofal.

 

Abraham Maslow causticamente observou, a ciência é um mecanismo que permite a pessoas não criativas envolverem-se num trabalho criativo.

 

Os intelectuais [na esteira de Gramsci] esperavam conduzir e/ou ser conduzidos a uma terra em que a longa marcha rumo à liberdade, à igualdade e à fraternidade finalmente alcançaria seu destino.

 

[Segundo Karl Marx] a classe trabalhadora não poderia se emancipar sem emancipar toda a sociedade humana; assim como não poderia pôr fim à sua miséria se não pusesse fim a toda a miséria humana.

 

Para essa nova e institucionalmente confinada variedade de posições políticas e lutas por poder, a figura do “agente histórico” é totalmente irrelevante e pode ser eliminada da agenda sem consciência culpada e, acima de tudo, sem o travo amargo de uma perda.

 

Theodor W. Adorno: Os “verdadeiros trabalhadores” de fato não desfrutam de vantagens sobre seus correlativos burgueses – eles portam todas as marcas de mutilação do típico caráter burguês. Cuidado ao transformar nossa necessidade (a dos intelectuais que precisam do proletariado para a revolução) numa virtude do proletariado, como somos constantemente tentados a fazer.

 

Para Adorno, confiar a mensagem ao leitor desconhecido de um futuro indefinido pode ser preferível a transmiti-la aos contemporâneos considerados despreparados ou indispostos a ouvir, que dirá apreender e reter o que ouviram.

 

O expediente da “mensagem na garrafa” faz sentido se (e apenas se) quem a ele recorre acredita que os valores sejam eternos ou pelo menos de importância mais que momentânea; que as verdades sejam universais ou pelo menos não apenas paroquiais, suspeitando que as preocupações que hoje desencadeiam a busca da verdade e a mobilização em defesa de valores, ao contrário das preocupações momentâneas com o “gerenciamento de crises”, irão persistir.

 

Pierre Bourdieu assinalou que o número de personalidades no cenário político capazes de entender e articular as expectativas e demandas de seus eleitores está diminuindo depressa. (...) problemas privados são categorizados como questões públicas.

 

(...) trazer à luz as contradições não significa resolve-las. Um caminho longo e tortuoso se estende entre o reconhecimento das raízes de um problema e sua erradicação, e dar o primeiro passo não garante de maneira alguma que outros venham a ser dados, muito menos que o caminho seja percorrido até o fim.

 

[Ainda Bordieau]: Os que têm a oportunidade de dedicar suas vidas ao estudo do mundo social não podem permanecer neutros e indiferentes diante das lutas que têm como motivo o futuro do mundo.

 

As escolhas humanas não são mais determinadas do que são os movimentos dos jogadores de carteado pelas cartas que eles têm na mão. O lugar em que se está numa situação manipula a distribuição de possibilidades. Ele separa os movimentos viáveis dos inviáveis, assim como os mais prováveis dos menos prováveis. Mas nunca eliminam totalmente a escolha. (...) O poder humano significa a capacidade de manipular as probabilidades das escolhas humanas.

 

A parte “civilizada” da história humana foi desde o princípio, e provavelmente continuará a ser, uma mistura de aprendizado e esquecimento.

 

Adquirir novas habilidades sem abandonar as antigas é quase impossível. Para ter sucesso em enfrentar novos desafios, as velhas habilidades são de pouca ajuda, de modo que novas habilidades são exigidas.

 

Não sou um pregador moral, embora a questão da moralidade, e particularmente das fontes de suas forças e fraquezas, seja para mim um eixo em torno do qual giram todos os segredos da condição humana.

 

A vocação da sociologia é tornar a escolha de valores viável e plausível, assim como colocá-la ao alcance do indivíduo que tem sobre si o peso da responsabilidade de encontrar soluções adequadas para problemas existenciais socialmente produzidos.

 

Talcott Parson articulou assim a “questão hobbesiana”: como induzir, forçar ou doutrinar seres humanos, abençoados ou amaldiçoados com o dom ambíguo do livre-arbítrio, a serem guiados normativamente e a seguirem por rotina cursos de ação manipuláveis, embora previsíveis? (...) Em suma, como fazer as pessoas terem o desejo de fazer aquilo que devem fazer?

 

Em “História para as ultimas coisas”, Siegfried Kracauer assinala que, à medida que a “segurança paroquial” dá lugar à “confusão cosmopolita”, há um “sentimento generalizado de impotência e abandono”, de “estar perdido num território inexplorado e inimigo”, que – perigosamente – “induz muitas pessoas, presumivelmente a maioria delas, a correr para o abrigo de uma crença unificadora e reconfortante”.

 

Hoje nos encontramos num “interregno”, um estado em que as velhas formas de fazer as coisas não funcionam mais e os modos de vida antigos e herdados não mais se ajustam à presente conditio humana, mas as novas maneiras de enfrentar os desafios e os novos modos de vida mais adequados às novas condições ainda não foram inventados, posicionados e postos em movimento.

 

As formas de vida moderna podem diferir em muitos aspectos – mas o que une todas elas é exatamente a fragilidade, transitoriedade, vulnerabilidade e inclinação à mudança constante. “Ser moderno” significa modernizar-se – compulsiva e obsessivamente; nem tanto “ser”, muito menos manter sua identidade intacta, mas eternamente “tornar-se”, evitar a conclusão, continuar indefinido.

 

Cem anos atrás, “ser moderno” significava buscar “o estado final de perfeição”. Agora significa uma infinidade de aperfeiçoamentos, sem ter em vista nem desejar um “estado final”.

 

[Para Hobbes e em seu tempo] a sociologia era uma “ciência e tecnologia da falta de liberdade”.

 

[A nova sociologia] exige humildade, abdicar dos privilégios de especialista infalível, expor-se ao risco de os outros demonstrarem que você está errado.

 

A trajetória de sucessivas mudanças lembra mais um pêndulo que uma linha reta. Cada mudança foi uma tentativa de conciliar demandas incompatíveis, mas os esforços, em geral, terminaram com a renúncia a uma parte de uma delas com o objetivo de satisfazer uma parte da outra. E assim, cada mudança inspirou, mais cedo ou mais tarde, a demanda de outra. (...) Outra forma de dizer a mesma coisa é que cada melhoramento trouxe novas deficiências. (...) os antecedentes só se revelam por meio de suas consequências.

 

A civilização (significando ordem social) é uma permuta em que alguns valores são sacrificados em função de outros. (...) Nesses termos, pode-se dizer que a história das mudanças sistêmicas é um sucessão de permutas.

 

Essa nova tendência assinala outra volta do pêndulo entre segurança e liberdade – solidez e flexibilidade, determinação e ausência de limites, restrição e incerteza.

 

Pela trajetória “pendular” das sequências históricas, é inevitável a proximidade íntima, cheia de confusões, entre “avanço e recuo”, ou “utopia e nostalgia”.

 

Decidir ir a público envolve tornar o texto refém do destino (desconhecido e jamais totalmente previsível, que dirá controlável). Uma vez enviadas as mensagens têm vida própria, autônoma. (...) a versão do autor não goza de superioridade sobre as leituras dos destinatários, já que os significados emergentes são em geral produtos da interação entre o texto e os arcabouços cognitivos formados pelas variadas experiências dos leitores.

 

Ironia, distância, não comprometimento e acima de tudo a consciência do caráter de “até segunda ordem” das verdades é uma das poucas advertências da versão atual da razão que deveriam – realmente – ser levadas a sério.

 

As placas de trânsito mudam mais depressa que o tempo gasto para chegar aos destinos que elas apontam. Com o acúmulo de experiências como essa, é arriscado tratar com seriedade qualquer relato sobre a “situação do planeta”, que dirá prognósticos sobre suas condições futuras. Para o bem ou para o mal, nossos contemporâneos são treinados na arte da flexibilidade, o metavalor “imperativamente endossado e recomendado”, assim como popularmente aclamado, da modernidade líquida.

 

Hannah Arendt sugeriu que pensar é a mais solitária das atividades humanas.

 

O mundo está mudando e se reordenando (não sem nossa cooperação ou omissão) com demasiada rapidez para que um conjunto de regras, qualquer que seja ele, permaneça funcional por toda a vida de um indivíduo, que dirá ultrapassá-la.

 

Me preocupa a separação e o iminente divórcio entre o poder, que é a capacidade de fazer com que as coisas sejam feitas, e a política, que é a capacidade de decidir quais coisas precisam ser feitas e quais não precisam.

 

Grande parte do poder antes contido na soberania do Estado evaporou-se no “espaço dos fluxos” global de Manuel Castells, enquanto a política até hoje continua ser local.

 

O que se seguiu a este afastamento foi o paradoxo de uma progressiva coletivização dos problemas, juntamente com a privatização das ferramentas e dos meios necessários para sua solução. Um paradoxo cuja resolução ficou a cargo dos indivíduos, incumbidos da impossível tarefa de enfrentar de modo individual, por conta própria, desafios socialmente produzidos (e apenas socialmente solucionáveis).

 

O privado invadiu e conquistou a “ágora”, aquele espaço no qual se esperava que interesses privados fossem traduzidos em questões públicas, e onde necessidades públicas se traduzissem em direitos e deveres privados.

 

[Indignai-vos! De Stéphane Hessel]

 

“Cortesia” é uma das últimas palavras que me viriam à mente se eu fosse descrever o mundo em que vivemos. “Hipocrisia”, sim. Contudo, confundir hipocrisia (ou seja, a tendência a manter distância do que causa a verdadeira dor e faz as pessoas realmente sofrerem, e a vender a crueldade sob o rótulo da benevolência) com cortesia, de qualquer forma, é o principal objetivo e a marca registrada da hipocrisia, sendo a “correção política” uma de suas manifestações flagrantes, ainda que hipocritamente disfarçada.

 

Usamos no dia a dia, pública e ostentosamente um tipo de linguagem antes confinado às sarjetas a aos antros do vicio. Não respeitamos mais os direitos de privacidade e intimidade. Talvez o lar do inglês ainda seja seu castelo, mas um castelo aberto aos visitantes 24 horas por dia, sete dias por semana, habitado por pessoas que temem a ausência ou escassez de observadores intrusos como a mais terrível das pragas do Egito.

 

Nós nos deleitamos com a visão de aprendizes a perdedores a que se mostra a porta da rua e dos habitantes da casa do Big Brother excluídos pelo voto após uma longa semana de humilhações e ridicularizações rotineiras. Não respeitamos nem a dignidade do outro nem a nossa. Quando ouvimos a palavra “honra”, recorremos a um dicionário.

 

É como se o “direito de difamar” tivesse se tornado um direito humano com tendência a ser universalmente respeitado e defendido com unhas e dentes pelas agências guardiães da lei.

 

Sem a ressurreição do respeito, não há chance para a solidariedade. Sem solidariedade, não há chance de despertar as “as preocupações centrais da sociedade” de sua atual sonolência e forçá-las a abandonar o abrigo impenetrável da desatenção humana.

 

A sociologia nasceu do desejo de aparfeiçoar a sociedade.

 

O que me põe de lado na comunicação ao estilo blog é a atordoante velocidade com que as mensagens entram e saem do domínio da atenção do público, quase sempre sem deixar testamento. Elas surfam pelas mentes em vez de se estabelecer dentro delas pelo tempo necessário para uma reflexão madura e para produzir consequências. Rapidamente lido, logo esquecido.