EXTRATO DE: GENEALOGIA DA MORAL

Autor: Friedrich Nietzsche

Ed.: Companhia das Letras – 1987

 

8

PRÓLOGO

 

Se vocês gostarão desses nossos frutos? – Mas que importa isso às árvores! Que importa isso a nós, filósofos!...

 

O objetivo [desta obra] é percorrer a imensa, longínqua e recôndita região da moral – da moral que realmente houve, que realmente se viveu – com novas perguntas, com novos olhos: isto não significa praticamente descobrir essa região?...

 

É certo que (...) até que minhas obras sejam “legíveis” -, para o qual é imprescindível ser quase uma vaca, e não um “homem moderno”: o ruminar...

 

15

PRIMEIRA DISSERTAÇÃO – “BOM E MAU”, “BOM E RUIM

 

Na sua impotência, o ódio toma proporções monstruosas e sinistras, torna-se a coisa mais espiritual e venenosa.

 

Enquanto o homem nobre vive com confiança e franqueza diante de si mesmo (...) o homem do ressentimento não é franco, nem ingênuo, nem honesto e reto consigo.

                                                                                                                                                   

(...) Mirabeau, que não tinha memória para os insultos e baixezas que sofria, e que não poderia desculpar, simplesmente porque – esquecia.

 

Precisamente o oposto do que sucede com o nobre, que primeiro e espontaneamente, de dentro de si, concebe a noção básica de “bom, e a partir dela cria para si uma representação de “ruim”. Este “ruim” de origem nobre e aquele “mau” que vem do caldeirão do ódio insatisfeito – o primeiro uma criação posterior, secundária, cor complementar; o segundo, o original, o começo, o autêntico feito na concepção de uma moral escrava – como são diferentes as palavras “mau” e “ruim”, ambas aparentemente opostas ao mesmo sentido de “bom”: perguntemo-nos quem é propriamente “mau”, no sentido da moral do ressentimento.

 

Na raiz de todas as raças nobre é difícil não reconhecer o animal de rapina, a magnífica besta loura que vagueia ávida de espólios e vitorias; de quando em quando este cerne oculto necessita desafogo, o animal tem que sair fora, tem que voltar à selva – nobreza romana, árabe, germânica, japonesa, heróis homéricos, vikings escandinavos: nesta necessidade todos se assemelham.

 

Supondo que fosse verdadeiro o que agora se crê como “verdade”, ou seja, que o sentido de toda cultura é mestrar o animal de rapina “homem”, reduzi-lo a um animal manso e civilizado, doméstico (...).

 

Esses “instrumentos da cultura” são uma vergonha para o home, e na verdade uma acusação, um argumento contrario à “cultura”!

 

Exigir da força que não se expresse como força, que não seja querer-dominar, um querer-vencer, um querer-subjugar, uma de sede de inimigos, resistências e triunfos, é tão absurdo quanto exigir da fraqueza que se expresse como força.

 

[Para os oprimidos] bom é todo aquele que não ultraja que a ninguém fere, que não ataca, que não acerta contas, que remete a Deus a vingança, que se mantém na sombra como nós, que foge de toda maldade e exige pouco da vida, como nós, os pacientes, humildes, justos

 

“(...) a impotência que não acerta contas é mudada em ‘bondade’; a baixeza medrosa, em ‘humildade’; a submissão àqueles que se odeia em ‘obediência’; (...) Falam também do ‘amor aos inimigos’ – e suam ao falar isso.”

 

“(...) melhor a voz, maiores os gritos

 

43

SEGUNDA DISSERTAÇÃO – “CULPA”, MÁ CONSCIÊNCIA” E COISAS AFINS

 

“Grava-se algo a fogo, para que fique na memória; apenas o que não cessa de causar dor fica na memória.”

 

(...) todas as religiões são, no seu nível mais profundo, sistemas de crueldades (...)

 

(...) o grande conceito moral de “culpa” teve origem no conceito muito material de “dívida

 

(...) “o criminoso merece castigo porque podia ter agido de outro modo

 

De onde retira sua força esta idéia da equivalência entre dano e dor?

 

Através da “punição” ao devedor, o credor participa de um direito dos senhores (...) A compensação consiste, portanto, em um convite e um direito à crueldade.

 

Ver-sofrer faz bem, fazer-sofrer mais bem ainda.

 

Sem crueldade não há festa: é o que ensina a mais antiga e mais longa historia do homem – e no castigo também muito de festivo.

 

Se crescem o poder e a consciência de si de uma comunidade, torna-se mais suave o direito penal; se há enfraquecimento dessa comunidade, e ela corre grave perigo, forma mais dura desse direito voltam a se manifestar.  (...) Não é inconcebível uma sociedade com tal consciência de poder que se permitisse o seu mais nobre luxo: deixar impunes os seus ofensores.

 

Historicamente o direito representa justamente a luta contra os sentimentos reativos, a guerra que lhes fazem os poderes ativos e agressivos, que utilizam parte de sua força para conter os desregramentos do patho [paixão, excesso]s reativo e impor um acordo.

 

Segue-se que justo e injusto existem apenas a partir da instituição da lei e não a partir do ato ofensivo. (...) em si, ofender etc não pode ser algo injusto, ne medida em que essencialmente (...) a vida atua ofendendo, violentando, explorando, destruindo, não podendo sequer ser concebida sem esse caráter.

 

Todo acontecimento do mundo orgânico é um subjugar e assenhorear-se, (...)

 

(... o “desenvolvimento” de uma coisa, um uso, um órgão, é tudo menos o seu progressus em direção a uma meta, menos ainda um pregressus lógico e rápido, obtido com um dispêndio mínimo de forças – mas sim a sucessão de processos de subjugamento que nela ocorrem, mais ou menos profundos, mais ou menos interdependentes, juntamente com as resistência que a cada vez encontram, as metamorfoses tentadas com o fim de defesa e reação, e também os resultados de ações contrarias bem-sucedidas.

 

(...) os elementos da síntese mudam sua Valencia, e portanto se reordenam, de modo que ora esse, ora aquele elemento se destaca e predomina às expensas dos outros (...)

 

Para dar uma idéia de como incerto (...) o “sentido do castigo” (...) Castigo como impedimento de novos danos. Castigo como pagamento de um dano ao prejudicado. Castigo como isolamento de uma perturbação do equilíbrio, para impedir o alastramento da perturbação. Castigo como inspiração de temor àqueles que detreminam e executam o castigo. Castigo como espécie de compensação pelas vantagens que o criminoso até então desfrutou (por exemplo, fazendo-o trabalhar como escravo nas minas) . Castigo como segregacao de um elemento que degenera (por vezes de todo um ramo de família, como prescreve o direito chinês: como meio de preservação da pureza da raça ou de consolidação de um tipo social). Castigo como festa, ou seja, como ultraje e escarnio de um inimigo finalmente vencido. Castigo como criação de memória, seja para aquele que sofre o castigo, seja para aqueles que o tetemunham. Castigo como pagamento de um honorário, exigido pelo poder que protege o malfeitor dos excessos da vingança. Castigo como compromisso com o estado natural da vingança, quando este é ainda mantido e reivindicado como privilegio por linhagens poderosas. Castigo como declaração e ato de guerra contra um inimigo da paz, da ordem, da autoridade, que, sendo perigoso para a comunidade, como violador dos seus pressupostos, como rebelde, traidor e violentador da paz, é combatido com os meios que a guerra fornece.

 

Justamente entre prisioneiros e criminosos o autentico remorso é algo raro ao estremo, as penitenciárias e casas de correção não são o viveiro onde se reproduz essa espécie de verme roedor (...) O castigo endurece e torna frio; concentra; aguça o sentimento de distância; aumenta a força de resistência.

 

Durante milênios os malfeitores alcançados pelo castigo pensaram a respeito de sua “falta”: “algo aqui saiu errado”, e não: “eu não devia ter feito isso” (...)

 

O que em geral se consegue com o castigo, em homens e animais, é o acréscimo do medo, a intensificação da prudência, o controle dos desejos: assim o castigo doma o homem, mas não o torna “melhor”.

 

[Nietzsche introduz o conceito do homem de “má consciência”. Ele vê a humanidade em dois momentos, antes e depois da criação do estado, da comunidade que oprime o homem primitivo, livre em suas manifestações. A “má consciência” é a alternativa obrigatória de conduta para os oprimidos. O  homem deixa de ser livre para, por exemplo, odiar outro home, se vingar livremente de outro, porque agora ele tem que se submeter a leis que o punem esses “sentimentos originais”.Veja-se algumas de suas afirmações:

 

Vejo a má consciência como a profunda doença que o homem teve de contrair sob a pressão da mais radical das mudanças que viveu – a mudança que sobreveio quando ele se viu definitivamente encerrado no âmbito da sociedade e da paz.

 

Todos os instintos que não se descarregam para fora voltam-se para dentro – isto é o que chamo de interiorização do homem (...)

 

A hostilidade, a crueldade, o prazer na perseguição, no assalto, na mudança, na destruição – tudo isso se voltando contra os possuidores de tais instintos: esta é a origem da má consciência. Esse homem que, por falta de inimigos e resistências exteriores, (...) tornou-se o inventor da “má consciência”.

 

[Para Nietzsche, o Estado é] um bando de bestas louras, uma raça de conquistadores e senhores, que, organizada guerreiramente e com força para organizar, sem hesitação lança suas garras terríveis sobre uma população talvez imensamente superior em numero, mas ainda informe e nômade. (...) Eles não sabem o que é culpa, responsabilidade, consideração, esses organizadores natos; eles são regidos por aquele tremendo egoísmo de artista, que tem o olhar de bronze, e já se crê eternamente justificado na “obra”, como a mãe no filho.

 

(...) esse instinto de liberdade (na minha linguagem: a vontade de poder) reprimido, recuado, encarcerado no intimo, por fim capaz de desafogar-se somente em si mesmo: isto, apenas isto, foi em seus começos a má consciência.

 

(...) e uma coisa sabemos doravante, não tenho dúvida – de que espécie é (...) o prazer que sente o desinteressado, o abnegado, o que se sacrifica: este prazer vem da crueldade. (...) somente a má consciência, somente a vontade de maltratar-se fornece a condição primeira para o valor do não-egoísmo.

 

(...) os ancestrais das estirpes mais poderosas deverão afinal, por força da fantasia do temor crescente, assumir proporções gigantescas e desaparecer na treva de uma dimensão divina inquietante e inconcebível – o ancestral termina necessariamente transfigurado em deus. Talvez esteja nisso a origem dos deuses, uma origem no medo, portanto!

 

Supondo que tenhamos embarcado na direção contrária, com uma certa probabilidade se poderia deduzir, considerando o irresistível declínio da fé no Deus cristão, que já agora se verifica um considerável declínio da consciência de culpa do homem; sim, não devemos inclusive rejeitar a perspectiva de que a vitória total e definitiva do ateísmo possa livrar a humanidade desse sentimento de estar em dívida com seu começo, sua causa prima. O ateísmo e uma espécie de segunda inocência são inseparáveis.

 

(...) o golpe de gênio do cristianismo: o próprio Deus se sacrificando pela culpa dos homens, o próprio Deus pagando a sim mesmo, (...) o credor se sacrificando por seu devedor, por amos (é de se dar crédito?), por amor a seu devedor!!!!

 

(...) esse homem da má consciência se apoderou da suposição religiosa para levar seu automartírio à mais horrenda culminância.

 

Para se erigir um santuário, é preciso antes destruir um santuário: esta é a lei – mostrem-me um caso em que ela não foi cumprida!

 

(...) como se mostra afável, como se mostra afetuoso o mundo, tão logo fazemos como todo mundo e nos “deixamos levar como todo mundo!!!

 

Esse homem do futuro, que nos salvará não só do ideal vigente, como daquilo que dele forçosamente nasceria (...) esse anticristão e antiniilista, esse vendedor de Deus e do nada – ele tem que vir um dia...

 

Mas que estou a dizer? Basta! Basta! Neste ponto não devo senão calar: caso contrário estaria me arrogando o que somente a um mais jovem se consente, a um “mais futuro”, um mais forte do que eu – o que tão só a Zaratustra se consente, a Zaratustra, o ateu...

 

 

Notas:

(3) Em alemão existem dois termos para “consciência”: Bewuffstsein designa o estado de consciência, a percepção (significa ao pé da letra, “estar consciente”); Gewissen designa a consciência moral, a faculdade de fazer distinções morais.

 

(20) Thomas H. Huxley (1825-1895): biólogo inglês, partidário de Darwin; avô do romancista Aldous Huxley e do também biólogo Julian Huxley.

 

(26) Poema “À lua”, de Goethe: “Aquilo que, não sabido/ ou não pensado pelos homens, / No labirinto do peito/ Vaga durante a noite

 

 

80

Terceira dissertação

O QUE SIGNIFICAM IDEAIS ASCÉTICOS?

 

(...) os artistas (...) sempre foram os criados de quarto de uma religião, uma filosofia, uma moral; sem contar que, infelizmente, não raro foram dóceis cortesãos de seus seguidores e patronos, e sagazes bajuladores de poderes antigos, ou poderes novos e ascendentes.

 

As três palavras de pompa do ideal ascético: humildade, pobreza e castidade.

 

Reconhece-se um filósofo no fato de evitar três coisas que brilham e fazem barulho: a fama, os príncipes e as mulheres.

 (...).

 

(...) falava-se entre os filósofos da antiga Índia: “para  que descendentes, para aquele cuja alma é o mundo?”

 

Todas as coisas boas foram um dia coisas ruins; cada pecado original tornou-se uma virtude original. O casamento, por exemplo, foi por muito tempo uma ofensa aos direitos da comunidade; pagava-se uma sanção por ser tão imodesto e ter a pretensão de uma mulher só para si (...)

 

(...) todo aquele que alguma vez construiu um “novo céu”, encontrou o poder para isso apenas no próprio inferno...

 

(...) por um longo tempo o ideal ascético serviu ao filósofo como forma de aparecer, como condição de existência – ele tinha de representá-lo para poder ser filósofo, tinha de crer nele para poder representá-lo.

 

Existe home suficiente coragem, ousadia, confiança, vontade do espírito, vontade de responsabilidade, liberdade de vontade, para que de ora em diante o filósofo seja realmente possível?

 

Pois uma vida ascética é uma contradição: aqui domina um ressentimento impar, aquele de um insaciado instinto e vontade de poder que deseja senhorear-se, não de algo da vida, mas da vida mesma, de suas condições maiores, mais profundas e fundamentais; aqui se faz a tentativa de usar a força para estancar a fonte da força; (...)

 

(...) o sacerdote é aquele que muda a direção do ressentimento. Pois todo sofredor busca instintivamente uma causa para seu sofrimento, um agente culpado suscetível de sofrimento – em suma, algo vivo, no qual possa sob algum pretexto descarregar seus afetos, em ato ou in effigie [simbolicamente]: (...) “Alguém deve ser culpado de que esteja mal.”

 

Pois atente-se para isso: os fortes buscam necessariamente dissociar-se, tanto quanto os fracos buscam associar-se; quando os primeiros se unem, isto acontece apenas com vista a uma agressão coletiva, uma satisfação coletiva da sua vontade de poder, com muita oposição da consciência individual; os fracos, ao contrário, se agupam, tendo prazer nesse agrupamento – seu instinto se satisfaz com isso, tanto quanto o instinto dos “senhores” natos (isto é, da solitária, predatória espécie “homem”) é irritado e perturbado pela organização. Sob toda oligarquia se esconde sempre (...) o capricho tirânico; toda oligarquia está sempre a tremer da tensão que cada membro sente para permanecer senhor deste capricho. (...) Platão atesta isso em uma centena de passagens, Platão, que conhecia seus iguais – e a si mesmo...)

 

(...) “má consciência” animal (da crueldade voltada para trás) (...) ávidos de motivos – motivos aliviam -, ávido também de remédios e narcóticos, o homem termina por aconselhar-se com alguém que conhece também as coisas ocultas – e vejam! Ele recebe uma indicação, recebe do seu mago, o sacerdote ascético, a primeira indicação sobre a “causa” do seu sofrer: ele deve buscá-la em si mesmo, em uma culpa, um pedaço de passado, ele deve entender seu sofrimento mesmo como uma punição...(...) o doente foi transformado em “pecador”...

 

(...) o ideal ascético inscreveu-se de maneira terrível e inesquecível em toda a história do homem;

 

[sobre os pregadores cristãos] essa gente não cessa de esmiuçar suas questões mais pessoais, suas tolices, tristezas e preocupações miseras, como se o próprio ser das coisas tivesse a obrigação de ocupar-se delas; essa gente não cansa de envolver Deus nas mínimas aflições em que vem a se encontrar.

 

(...) se Deus mesmo se revela como nossa mais longa mentira? (...) Porque o ideal ascético foi até agora senhor de toda filosofia, porque a verdade foi entronizada como Ser, como Deus, como instancia suprema, porque a verdade não podia em absoluto ser um problema. (...) A partir do momento em que a fé no Deus do ideal ascético é negada, passa a existir um novo problema: o problema do valor da verdade.

 

Ambos, ciência e ideal ascético, acham-se no mesmo terreno – já o dei a entender – na mesma superestimação da verdade (...) de modo a que, s serem combatidos, só podemos combatê-los e questioná-los em conjunto. Uma avaliação do ideal ascético conduz inevitavelmente a uma avaliação da ciência: (...) Platão contra Homero: eis o verdadeiro, o inteiro antagonismo – ali, o mais voluntarioso “partidário do além”, o grande caluniador da vida; aqui, o involuntário divinizador da vida, a natureza áurea.

 

Teria o homem menos necessidade de recorrer ao além para solucionar seu enigma de existir, agora que esse existir aparece como ainda mais gratuito, ínfimo e dispensável na ordem visível das coisas?

 

Posto que nada que o homem “conhece” satisfaz seus desejos, antes os contradiz e amedronta, que divina escapatória poder buscar a culpa disso não no “desejar”, mas no “conhecer”!... “Não existe conhecer: logo – existe um Deus”: que nova elegantia syllogismi [elegância do silogismo]! que triunfo do ideal ascético!

 

(...) não gosto dos agitadores fantasiados de heróis que usam o capuz mágico do ideal em suas cabeças de palha; (...)

 

Ver a natureza como prova da bondade e proteção de um Deus; interpretar a história para a gloria de uma razão divina, como permanente testemunho de uma ordenação moral do mundo e de intenções morais ultimas; explicar as próprias vivencias como durante muito tempo fizeram os homens pios, como se fosse tudo previdência, tudo aviso, tudo concebido e disposto para a salvação da alma: isso agora acabou, isso tem a consciência contra si, as consciências  refinadas o vêem como indecoroso, desonesto, como mentira, feminismo, fraqueza, covardia (...) também o cristianismo moral deve ainda perecer – estamos no limiar deste acontecimento (...)

 

A falta de sentido do sofrer, não o sofrer, era a maldição que até então se estendia sobre a humanidade – e o ideal ascético lhe ofereceu um sentido!

 

(...) o homem preferira ainda querer o nada a nada querer...

 

 

Notas:

 

(4) Ludwig Feuerbach (18-4-1872): pensador alemão, precursor de Karl Marx; autor de A essência do cristianismo (1841)

 

(12) “Dos Amores”, de Ovídio: “Nós nos lançamos ao que ´´e proibido, e ansiamos o que nos é negado.”

 

(16) Jus primae noctis: direito, que tinha o senhor feudar, de deflorar a noiva do seu servo.

 

(42) “Alemanha, Alemanha acima de tudo”: começo do hino alemão.

 

(44) [feminista] No sentido nietzschiano de “coisa de mulheres”, “debilidade”; Feminismus, no original.

 

 

153

APÊNDICE: FADO E HISTÓRIA

 

(...) grandes reviravoltas ocorrerão, quando a massa perceber que todo o cristianismo se baseia em conjecturas; existência de Deus, imortalidade, autoridade da Bíblia, inspiração etc., sempre serão problemas. Eu tentei negar tudo isso: oh, demolir é fácil, mas edificar! E mesmo demolir parece mais fácil do que é; somos tão intimamente condicionados pelas impressões de nossa infância, as influências de nossos pais, nossa educação, que esses preconceitos profundamente enraizados não podem ser facilmente removidos por argumentos racionais ou por simples vontade.

 

Tudo se move em círculos imensos, sempre mais amplos; o homem é um dos círculos mais interiores. Querendo medir as oscilações daqueles exteriores, ele terá de, a partir de si e dos círculos mais próximos, abstrair aqueles mais abrangentes.

 

Mas na medida em que o homem é arrastado nos círculos da história universal, surge essa luta da vontade individual com a vontade geral; aqui se insinua este problema infinitamente importante, a questão do direito do indivíduo ao povo, do povo à humanidade, da humanidade ao mundo; aqui se acha também a relação fundamental entre fado e história.

 

Não nos vem tudo ao encontro no espelho de nossa personalidade? E os acontecimentos não dão apenas o tom do nosso destino, enquanto a força e a fraqueza com que ele nos atinge dependem tão somente do nosso temperamento?

 

Muitos povos, atingidos pelos mesmos acontecimentos, foram influenciados da maneira mais diferente.

Portanto é algo restritivo querer impor a toda a humanidade alguma forma especial de Estado ou de sociedade, como estereótipos; todas as idéias sociais e comunistas sofrem desse erro.

 

Fado é a infindável força de resistência contra a livre vontade; livre vontade sem fado é tão pouco concebível como espírito sem real, bem sem mal. Pois só a oposição cria o atributo...

 

(...) “sujeição à vontade de Deus” e “humildade” não passam de um véu para o covarde temor de afrontar com decisão o destino. (...) fado é somente um conceito abstrato, uma forma sem matéria, que para o indivíduo há apenas um fado individual, que fado nada é senão uma cadeia de acontecimentos, que o homem, tão logo atue, criando assim seus próprios acontecimentos, determina seu próprio fado, e sua atividade não começa apenas com o nascimento, mas já em seus pais e antepassados.

 

O fado de Deus ter se feito homem indica apenas que o homem não deve buscar no infinito sua felicidade, mas fundar na Terra o seu céu; a ilusão de um mundo sobreterrestre levou os espíritos humanos a uma atitude equivocada perante o mundo terrestre: Fo fruto de uma infância dos povos... Em meio a difíceis dúvidas e lutas a humanidade se torna viril: ela reconhece em si o começo, o meio e o fim da religião.

 

 

159

POSFÁCIO

 

Escrito originalmente para “complementação e clarificação de Além do bem e do mal”. Segundo constava no frontispício da primeira edição, Genealogia da Moral tornou-se um dos mais influentes e controversos livros de Nietzsche. Foi redigido em julho e agosto de 1887 e publicado logo depois, às expensas do autor (...).

 

(...) os impulsos cruéis se relacionam profundamente às conquistas culturais: arte, direito, religião e organização política seriam impensáveis sem eles.  (...) Uma genealogia da moral implica, inevitavelmente, uma psicologia do conhecimento.

 

O sacerdote ascético dirige o ressentimento dos “escravos” para dentro de si mesmos; daí a ânsia pelo nada, o ideal ascético. (...) O ideal científico, apresentando-se como rival do ideal ascético, na verdade procederia dele, por ainda acreditar na verdade, por não possuir uma “fé”, uma “meta” própria.

 

Por trás do jogo percebemos a visão grandiosa e trágica de duas forças que se opõem através dos tempos, o duelo entre as forças da criação e da destruição, entre a vida e a morte. (...) na discussão dos três expedientes para lidar com o desprazer: a religião, o entorpecimento, o trabalho (romanticamente, Nietzsche ressalta neste o elemento desumanizador, maquinal; Freud, mais realista, dá ao trabalho um lugar eminente na “economia” da vida).

 

(...) Machado de Assis, publicou o conto "A Causa Secreta" , talvez o melhor estudo sobre o sadismo que há na literatura mundial.)

 

Por fim, o leitor não deve esquecer que este livro foi escrito no século XIX. Nesse meio tempo, muito se fez e muito se descobriu nas ciências que serviram de base para as conjecturas de Nietzsche. No que toca a uma genealogia dos sentimentos e atitudes morais, os desenvolvimento mais fascinantes, nos dias de hoje, decorrem das ideias de um pensador que foi mal compreendido e subestimado por Nietzsche: Charles Darwin.

 

 

 

 

 

 

GLOSSÁRIO

 

Causa fiendi – causa da origem

 

Fado - Forças misteriosas que se supõe dirigirem o destino: os fados não quiseram nossa felicidade.

 

Gosto in artibus et litteris – nas artes e nas letras

 

Per analogiam – por analogia

 

Sub ratione boni – por boa razao

Toto coelo - totalmente