EXTRATO DE: DISCURSO SOBRE OS FUNDAMENTOS DA DESIGUALDADE
Autor: Jean Jacques Rousseau – 1712-1778
Ed.: Martins Fontes (1754 / 1971)
VII – Introdução (por Jacques Roger)
“Essa obra [Discurso sobre as Ciências e as Artes] que me valeu um prêmio e me fez um nome, é quando muito medíocre”, escreverá ele mais tarde.
[JJR pergunta] deve-se crer que, na simplicidade dos primeiros tempos, os homens eram inocentes e virtuosos e que foram corrompidos pelas ciências e artes, ou [então], deve-se admitir que os homens são perversos e que as ciências e as artes devem seu nascimento aos nossos vícios?
[Para JJR] a palavra virtude tem apenas um sentido, e é o inteiro devotamento do homem aos seus semelhantes, do cidadão à pátria.
[JJR pergunta] “E o que será da virtude quando for preciso enriquecer a qualquer preço?”
“Para eles sou um bárbaro porque não me compreendem.” [citação de Ovídio: Barbarus hic ego sum quia non intelligor illis]
Se Rousseau odeia a polidez, é por ela destruir a transparência mútua e impedi-lo de ser ele mesmo: “Já não se ousa parecer o que se é (...) Nunca se saberá com quem se está lidando”.
“Eu fingia desprezar a polidez que não sabia praticar.”
“O sábio não corre atrás da fortuna, mas não está insensível à gloria.”
Rousseau especifica o mecanismo, puramente social, da perversão do homem:
“A primeira fonte do mal é a desigualdade; da desigualdade vieram as riquezas, pois as palavras pobre e rico são relativas e, em toda parte em q os homens forem iguais, não haverá ricos nem pobres. Das riquezas nasceram o luxo e o ócio; do luxo vieram as belas-artes, e do ócio, as ciências.”
“Entre os selvagens, o interesse pessoal fala tão alto quanto entre nós, mas não diz as mesmas coisas: o amor à sociedade e o cuidado com sua defesa comum são os únicos laços que os unem; a palavra propriedade, que custa tantos crimes a nossos homens de sociedade, quase não tem sentido entre eles; não têm entre si nenhuma discussão de interesse que os divida: nada os leva a enganar-se um ao outro; a estima publica é o único bem ao qual cada um aspira e que todos eles merecem (...) Digo-o com pesar; o homem de bem é aquele q não necessita enganar ninguém, e o selvagem é esse homem.
[Para JJR] “o mal não vem do homem, e sim do homem mal governado.”
“O estado de rico e de pobre tornou-se o de poderoso e de fraco e, enfim, o de senhor e de escravo, que é o derradeiro grau da desigualdade.” A degradação moral fomentou a degradação política; acompanha-a, alimenta-se dela; está hoje em seu auge: “os ricos deixariam de ser felizes, se o povo deixasse de ser miserável.
Para P. Burgelin, “Rousseau continua sendo um profeta do mundo contemporâneo porque foi o único a fazer o problema da ordem social provir das exigências de autenticidade existencial, e a vincular sua própria salvação à salvação do Estado”.
3 – Discurso sobre as Ciências e as Artes – Sobre (...) se o restabelecimento das ciências e das artes contribuiu para aperfeiçoar os costumes.
Prêmio da Academia de Dijon – 1750
Era uma antiga tradição (...) que um deus inimigo do repouso do homem era o inventor das ciências.
Sem as injustiças dos homens, para q serviria a jurisprudência? O que seria da história se não houvesse tiranos, nem guerras, nem conspiradores?
E o que será da
virtude, quando for preciso enriquecer a qualquer preço?
41 – Carta de Rousseau ao Sr. Gautier, professor da Academia Real de Letras de Nancy
Aquele que se acostumou, de uma vez por todas, a preferir sua vida ao seu dever, não tardará muito a preferir também as coisas que tornam a vida fácil e agradável.
59 – Resposta ao Rei da Polônia, Duque de Lorena
Que o cultivo das ciências corrompe os costumes de uma nação é o que ousei sustentar, é o que ouso acreditar haver provado. (...)
Em muitos aspectos os conhecimentos são úteis, no entanto os selvagens são homens e não sentem essa necessidade.
(...) quão cômoda é a crítica, pois, onde se ataca com uma palavra, são necessárias paginas para se defender.
O luxo tudo corrompe, tanto o rico que o desfruta como o miserável que o cobiça.
Pergunta-me se eu gostaria que o vício se mostrasse a descoberto. Claro que eu gostaria. A confiança e a estima renasceriam entre os bons, aprenderíamos a desconfiar dos maus e com isso a sociedade ficaria mais segura. Prefiro que meu inimigo me ataque de armas na Mao a que venha traicoeiramente ferir-me por trás.
Será a hipocrisia uma
homenagem que o vício presta à virtude?
Não há mais do que um passo do saber à ignorância, e a alternância de um para a outra é freqüente entre as nações; mas nunca se viu um povo, uma vez corrompido, voltar à virtude.
87 – Última resposta de Rousseau, de Genebra
Se inteligências celestiais cultivassem as ciências, disso só resultaria o bem; digo o mesmo dos grandes homens, que são feitos para guiar os demais.
(...) é uma loucura pretender que as quimeras da filosofia, os erros e as mentiras dos filósofos possam um dia ter alguma serventia. Seremos nós sempre logrados pelas palavras?
(...) custa menos distinguir-se pela tagarelice do que pelos bons costumes, desde que se é dispensado de ser homem de bem contanto que se seja um homem agradável.
A ignorância não é um
obstáculo nem para o bem nem para o mal, é somente o estado natural do homem.
O luxo pode ser necessário para dar pão aos pobres, mas, se não houvesse luco, não haveria pobres.
“(...) jamais esqueçais que, se não se celebrassem os grandes homens, inútil seria sê-lo.”
115 – Carta ao abade Raymal – autor do Mercure de France (jornal)
119 – Carta de Rousseau, de Genebra – a um acadêmico de Dijon
127 – Prefácio de uma segunda carta a Bordes
135 – Discurso sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade Entre os Homens
(...) teria desejado, para deter os projetos interesseiros e mal concebidos e as inovações perigosas que por fim causaram a perda dos atenienses, que cada qual não tivesse o poder de propor novas leis de acordo com seu capricho; que esse direito pertencesse apenas aos magistrados; que eles mesmos o usassem apenas com tanta circunspecção, que o povo, por sua vez, fosse tão reservado em dar seu consentimento a essas leis, e a promulgação só pudesse efetuar-se com tanta solenidade que, antes que a constituição fosse abalada, tivessem tempo de convencer-se de que é sobretudo a grande antiguidade das leis que as torna santas e veneráveis, de que o povo logo despreza aquelas que v\ê mudar todos os dias e de que, acostumando-se a menosprezar os usos antigos a pretexto de melhorá-lo, em geral introduzem-se grandes males para corrigir males menores.
Nenhum de vós é tão pouco esclarecido para ignorar que, onde cessam o vigor das leis e a autoridade de seus defensores, não pode haver nem segurança nem liberdade para ninguém.
(...) a maioria de nossos males é obra nossa e de que os teríamos evitado quase todos conservando a maneira de viver simples, uniforme e solitária que nos era prescrita pela natureza. Se ela nos destinou a sermos sãos, quase ouso assegurar que o estado de reflexão é um estado contrário à natureza e que o homem que medita é um animal depravado.
(...) ao tornar-se sociável e escravo, torna-se fraco, temeroso, rastejante, e sua maneira de viver, indolente e efeminada, acaba por debilitar-lhe ao mesmo tempo a força e a coragem.
(...) só buscamos conhecer por desejarmos usufruir, não sendo possível conceber por que aquele que não tivesse desejos nem temores se daria ao trabalho de raciocinar.
(...) o conhecimento da morte e de seus terrores é uma das primeiras aquisições que o homem fez ao distanciar-se da condição animal.
Quantos diferentes acasos não foram necessários [ao homem primitivo] para aprender os usos mais comuns desse elemento: Quantas vezes não o deixaram apagar antes de ter adquirido a arte de reproduzi-lo?
Suplico-lhes que reflitam o tempo e nos conhecimentos que foram necessários para encontrar os números, as palavras abstratas, os aoristos e todos os tempos dos verbos, as partículas, a sintaxe, ligar as proposições, os raciocínio e formar toda a lógica do discurso. Quanto a mim, assustado com dificuldades que se multiplicam e convencido da impossibilidade quase demonstrada de que as línguas possam ter nascido e se estabelecido por meios puramente humanos, deixo a quem quiser empreendê-la a discussão do difícil problema de saber o que foi o mais necessário: a sociedade já constituída para a instituição das línguas, ou as línguas já inventadas para o estabelecimento da sociedade.
Com paixões tão pouco ativas e um freio tão salutar, os homens, antes selvagens do que maus e mais preocupados em proteger-se do mal que podiam receber do que tentados a fazê-lo a outrem, não estavam sujeitos a rixas muito perigosas; como não tinham entre si nenhum tipo de relações e não conheciam, consequentemente, nem a vaidade, nem a consideração, nem a estima, nem o desprezo; como não tinham a menor noção do teu e do meu, nem nenhuma verdadeira idéia da justiça e olhavam as violências que podiam sofrer como um mal fácil de reparar, e não como uma injúria que se deve punir, e nem sequem pensavam em vingança a não ser maquinalmente e no momento, do mesmo modo que o cão morde a pedra que lhe atiram – suas disputas raramente teriam conseqüências sangrentas, se não tivessem motivo mais palpável do que o alimento. Vejo porém um mais perigoso, de que me falta falar.
(..) é fácil ver que a moral do amor é um sentimento factício, nascido do convívio da sociedade, e celebrado pelas mulheres com muita habilidade e cuidado a fim de estabelecerem seu império e tornar dominante o sexo que deveria obedecer.
(...) a partir do instante em que um homem necessitou do auxilio do outro, desde que percebeu que era útil a um só ter provisões para dois, desapareceu a igualdade, introduziu-se a propriedade, o trabalho tornou-se necessário e as vastas florestas se transformaram em campos risonhos que cumpria regar com o suor dos homens e nos quais logo se viu a escravidão e a miséria germinarem e medrarem com as searas.
As coisas poderiam ter permanecido iguais se os talentos fossem iguais (...)
“Se temos um príncipe, é para que nos preserve de ter um senhor.” – disse Plínio a Trajano.
(...) os cidadãos só se deixam oprimir na medida em que, arrastados por uma cega ambição e olhando mais para baixo do que para cima de si, passam a apreciar mais a dominação que a independência e consentem em carregar grilhões para, por sua vez, poder distribui-los. É muito difícil reduzir à obediência aquele que não procura comandar, e nem o político mais esperto conseguiria sujeitar homens que desejassem apenas ser livre.
(...) como a riqueza, a nobreza ou a posição, o poder e o mérito pessoal são em geral as principais distinções pelas quais os homens se medem na sociedade, eu provaria que o acordo ou o conflito dessas forças diversas são a indicação mais segura de um Estado bem ou mal constituído. (...) a riqueza é a ultima a quel elas se reduzem no fina, porque sendo a mais imediatamente útil ao bem-estar e a mais fácil de transmitir, é fácil servir-se dela para comprar todo o resto.
(...) em toda parte onde reina o despotismo, ele não tolera nenhum outro senhor (...) e a mais cega obediência é a única virtude que resta aos escravos.
(...) não tendo os súditos outra lei além da vontade do senhor, nem o senhor outra regra além das suas paixões, se esvaem mais uma vez as noções do bem e os princípios da justiça.
O cidadão sempre ativo, cansa-se, agita-se, atormenta-se continuamente para encontrar ocupações ainda mais laboriosas; trabalha até a morte, até corre ao seu encontro para se colocar em condição de viver, ou renuncia á vida para adquirir a imortalidade. (...) o selvagem vive em si mesmo; o homem sociável, sempre fora de si, só sabe viver na opinião dos outros e é, por assim dizer, do juízo deles que lhe vem o sentimento de sua própria existência.
Basta-me haver provado que não é esse o estado original do homem, e que somente o espírito da sociedade e a desigualdade que ela engendra é que mudam e alteram assim todas as nossas inclinações naturais.
Conclui-se desta exposição que a desigualdade sendo quase nula no estado de natureza, extrai sua força e seu crescimento do desenvolvimento de nossas faculdades e dos progressos do espírito humano e torna-se enfim estável e legitima pelo estabelecimento da propriedade e das leis.
245 – Carta de Voltaire a Rousseau
Jamais se empregou tanto espírito em querer tornar-nos animais; sente-se vontade de andar de quatro patas, quando se lê vossa obra.
(...) que tal destino [de sofrer injustiças] é o de quase todos aqueles que o amor às letras seduziram em demasia.
Que importa ao gênero humano que alguns zangões surrupiem o mel de algumas abelhas? Os letrados fazem estardalhaço de todas essas pequenas desavenças, o resto do mundo as ignora ou ri delas.
(..) tal como o Padre Malebranche, cuja brilhante imaginação escrevia contra a imaginação.
25- Resposta a Voltaire
Conquanto sejam necessários filósofos, historiadores e sábios para esclarecer o mundo e conduzir seus cegos habitantes, se me disse a verdade o sábio Mêmnon, não conheço nada tão louco como um povo de sábios.
Os mancos, diz Montaigne, são inaptos para os exercícios do corpo e, aos exercícios do espírito, as almas mancas.
Porém, neste século sábio, só se vêem mancos querendo ensinar os outros a andar. O povo recebe os escritos dos sábios para julg-los e não para instruir-se.
(...) aquilo que não sabemos nos prejudica mujito menos do que aquilo que acreditamos saber.
257 – Carta de Rousseau ao Sr. Philopolis
(...) conforme penso, a sociedade é tão natural à espécie humana como a decrepitude ao indivíduo, e que aos povos são necessárias as artes, as leis e os governos, como as muletas são necessárias aos velhos.
O que concorre para o bem geral pode ser um mal particular do qual é permitido livrar-se quando possível for. (...) Seria bom para o todo que fossemos civilizados já que o somos, mas certamente teria sido melhor para nós não o sermos.
Mas, meu senhor, se tudo está bem como está, tudo estava bem como estava, antes que houvesse governos e leis; logo, foi pelo menos supérfluo estabelecê-los.
Deixai tudo correr como for possível, para que tudo sempre corra bem. Se tudo é melhor que pode ser ser, deveis censurar qualquer ação que seja, pois toda ação produz necessariamente alguma mudança no estado em que estão as coisas no mento em que se efetua; logo, não se pode tocar em nada sem fazer o mal, e o quietismo mais perfeito é a única virtude que resta ao homem. Enfim, se tudo está bem como está, é bom que haja lapões, esquimós, algonquinos, chicacas, caraíbas, que vivem sem a nossa policia, hotentotes que zombam dela e um genebrino que as aprova. O próprio Leibniz concordaria com isso.
(...) continuo a ser o monstro que sustenta que o homem é naturalmente bom e que meus adversários continuam a ser as pessoas de bem que, para a edificação pública, se esforçam em provar que a natureza não criou senão celerados.
267 – Anotações de Voltaire sobre o “Discurso”
[criticando Rousseau ter igualado homens a macacos] Porque há no homem um instinto de uma aptidão que não existe no macaco.
O selvagem só é mau como um lobo que está com fome.
279 – Notas
Os príncipes (...) sabem muito bem que todas as necessidades que o povo se atribui são outras tantas correntes que ele carrega.
Não se percebe bem quais vantagens proporcionaria à sociedade uma melhor educação dada a essa metade do gênero humano que governa a outra.
Astiages, em Xenofonte, pede a Ciro que lhe preste contas da sua últim aula: “É que em nossa escola um menino grande que tinha um saio pequeno deu-o aum de seus colegas de menor tamanho e tirou-lhe o saio que era maior. Tendo o nosso preceptor feito de mim o juiz dessa contenda, julguei que devia deixar as coisas como estavam e que ambos pareciam mais bem acomodados nesse ponto. Diante disso, ele me fez ver que eu agira mal, pois ativera-me a considerar a conveniência; e, em primeiro lugar era preciso assegurar a justiça, que exigia que ninguém fosse violentado no que lhe pertencia.”
Para que eu sentisse prazer com vossos elogios, dizia o imperador Juliano a cortesãos que lhe gabavam a justiça, cumpriria que ousásseis dizer o contrário, se verdade fosse.
Não quero mais uma ocupação enganadora, na qual se acredita fazer muito pela sabedoria, fazendo tudo pela vaidade.
Os epicuristas negavam qualquer providencia, os acadêmicos duvidavam da existência da divindade e os estóicos, da imortalidade da alma.
Pitágoras foi o primeiro a fazer uso da doutrina interior; só a revelava aos seus discípulos depois de longas provas e com o maior mistério; dava-lhes secretamente lições de ateísmo e oferecia solenemente hecatombes a Júpiter. Os filósofos se deram tão tem com esse método que este se alastrou rapidamente pela Grécia, e daí passou para Roma, como se vê pelas obras de Cícero, que zombava com seus amigos dos deuses imortais, os quais tomava por testemunhas na tribuna e nas arengas.
[Dizia Montaigne que] Não foi por nosso discurso ou por nosso entendimento que recebemos nossa religião, foi por autoridade e injunção alheia.
(...) pode-se conhecer a fundo Pierre ou Jacques e ter-se feito muito pouco progresso no conhecimento dos homens.
Há verdades muito evidentes que à primeira vista parecem absurdos, e que sempre passarão por tais para a maioria das pessoas. Ide dizer a um homem do povo que o Sol está mais perto de nós no inverno do que no verão, ou que já se pôs antes que deixemos de vê-lo, e ele zombará de vós.
Quando não se tem mais nada de bom além do exterior, redobram-se todos os cuidados para conservá-lo.
Sou grosseiro, rabugento, indelicado por princípios, e não quero aduladores. Assim, vou dizer a verdade totalmente à vontade.
Se o homem é mau por natureza,m é claro que as ciências apenas o tornarão prior;
(...) na condução dos Estados não se trata de erigir estatuas, mas de bem governar os homens.
[!!!] Vejo a maioria dos espíritos do meu tempo aplicarem todo seu engenho para obscurecer a floria das belas e generosas ações antigas, dando-lhes alguma interpretação aviltante e inventando circunstancias e causas vãs para as explicar.
Aqueles que amam as riquezas são feitos para servir e aqueles que as desprezam, para mandar. Não é força do outro que sujeita os pobres aos ricos, mas é porque eles querem enriqucer por sua vez; sem isso, seriam infalivelmente os senhores.
Que admirem quanto quiserem a sociedade humana, nem por isso deixará de ser verdade que ela leva necessariamente os homens a odiarem-se entre si à proporção que seus interesses se cruzam, a se prestarem mutuamente aparentes favores e a se causarem, na verdade, todos os males imagináveis. (...) Não há talvez um homem abonado a quem herdeiros ávidos, amiúde os próprios filhos, não desejem secretamente a morte; não há um navio no mar cujo naufrágio não seria uma boa noticia para algum negociante; não há uma casa que um credor de má-fé não desejaria ver queimada com todos os papeis que ela contém; não há um povo que não se regozije com os desastres de seus vizinhos. É assim que tiramos vantagem no prejuízo de nossos semelhantes e que a perda de um quase sempre faz a prosperidade do outro; (...)
Quanto mais as capitais enchem de admiração os olhos estúpidos do povo, mais se deveria gemer ao ver os campos abandonados, as terras incultas e as granes estradas inundadas de infelizes cidadãos transformados em mendigos ou ladrões e fadados a termina um dia sua miséria no suplício da roda ou num monturo.
(...) não se deseja o que não se tem condições de conhecer. Segue-se daí que, como o homem selvagem só deseja as coisas que conhece e não conhece senão aquelas cuja posse está em seu poder ou é fácil de adquirir, nada deve ser tão tranqüilo como sua alma e nada tão tacanho como seu espírito.
(...) embora possa ser vantajoso para a espécie humana que a união entre o homem e a mulher seja permanente, não se conclui que isso tenha sido estabelecido assim pela natureza, senão cumpriria dizer que ela também instituiu a sociedade civil, as artes, o comércio e tudo quanto se pretende ser útil aos homens.
O amor próprio não passa de um sentimento relativo, factício e nascido na sociedade, que leva cada indivíduo a dar mais importância a si do que a qualquer outro, que inspira aos homens todos os males que se fazem mutuamente e é a verdadeira fonte da honra.
(...) cada homem, vendo seus semelhantes quase que só como veria animais de outra espécie, pode arrebatar a presa do mais fraco ou ceder a sua ao mais forte, encarando essas rapinagens apenas como acontecimentos naturais, sem o menor movimento de insolência ou de despeito, e sem outra paixão além da dor ou da alegria de um bom ou mau sucesso.
O magistrado não é juiz senão do direito rigoroso; mas o povo é o verdadeiro juiz dos costumes, juiz íntegro e até esclarecido sobre esse ponto, de quem por vezes se abusa, as a quem jamais se corrompe. As posições dos cidadãos devem, pois ser reguladas, não segundo seu mérito pessoal, o que seria deixar ao magistrado o meio de fazer uma aplicaçãoquase arbitrária da lei, mas segundo os serviços reais que prestam ao Estado e que são suscetíveis de uma avaliação mais exata.