EXTRATO DE: EM QUE CREEM OS QUE NÃO CREEM
Diálogo entre
Umberto Eco e o Arcebispo de Milão Carlo Maria Martini
Travado em 1996
UE:
A obsessão laica por um novo Apocalipse
A cercania desta
data [a proximidade do segundo milênio da era cristã] não pode deixar de evocar
uma imagem que dominou o pensamento durante vinte séculos: o Apocalipse.
Estamos vivendo
(embora não seja mais que na medida desatenta a que nos
acostumaram os
meios de comunicação de massas) nossos próprios terrores do final dos tempos, e
poderíamos dizer que os vivemos com o espírito do bibamus,
edarnus, cras moriemur (1), [Bebamos, comamos, amanhã morreremos (N. do
T.)] ao celebrar o crepúsculo das ideologias e da solidariedade no torvelinho
de um consumismo irresponsável.
CMM:
A esperança faz do fim, “um fim”.
No apocalipse o
tema predominante é, em geral, a fuga do presente para refugiar-se em um futuro
que, depois de ter desbaratado as estruturas atuais do mundo, instaure com
força uma ordem de valores definitiva, conforme às esperanças e desejos de quem
escreve o livro. Depois da literatura apocalíptica se acham grupos humanos
oprimidos por graves sofrimentos religiosos, sociais e políticos, os quais, não
vendo saída alguma na ação imediata, projetam-se na espera de um tempo, no qual
as forças cósmicas se abatam sobre a terra para derrotar todos os seus
inimigos. Neste sentido, pode observar-se que em todo apocalipse há uma grande
carga utópica e uma grande reserva de esperança, entretanto, ao mesmo tempo,
uma desolada resignação em relação ao presente.
Nem há, nem haverá,
potência humana, ou satânica, que possa opor-se à esperança do crente.
[Não tem
lógica/sentido, a expectativa de um apocalipse nos milênios, pois eles são uma
convenção humana e tardiamente estipulada.]
[O exemplo do
rabino que pede aos judeus para aprenderem com o ateu, que se ajuda um pobre o
faz por suas convicções, enquanto os crentes “entregam a Deus”.]
[A diferença entre
dizer “não existe” e “não deve existir”, dadas as provas que se tem]
[Os argumentos
recorrentes: se fulano é mal, é mal porque Deus o quis mal. E assim por diante
para explicar todas as incoerências dos sistemas religiosos. O que importa é
que Deus existe. Ponto.]
A experiência
demonstra que somente nos arrependemos daquilo que pressentimos poder fazer
melhor.
UE:
Quando começa a vida humana?
Quando há
negociação é porque não existe ainda uma regra fixa, negocia-se para
estabelecer uma.
A maior parte de
nós se horrorizaria se tivesse que degolar a um porco, mas o presunto comemo-lo
tranqüilamente. Eu não esmagaria jamais uma centopéia na grama, todavia,
comporto-me com violência frente aos mosquitos.
O traducianismo pregado por Tertuliano, segundo o qual a alma
(e com ela o pecado original) transmite-se através do sêmen, foi repudiado pela
Igreja. Se ainda Santo Agostinho tentava mitigá-lo sob uma forma de traducianismo espiritual, pouco a pouco, se foi impondo o
criacionismo segundo o qual a alma é introduzida diretamente por Deus no feto
em um momento dado de sua gestação.
Qual é hoje a
atitude do teólogo frente ao criacionismo clássico? Definir o que é, e onde
começa, a vida é uma questão em que nos jogamos a vida. Expor-me estas
perguntas é um duro peso, moral, intelectual e emotivo, creia, também para mim.
CMM:
A vida humana participa da vida de Deus
Uma coisa, com
efeito, é falar da vida humana e de sua defesa do ponto de vista ético, e outra
é perguntar-se pela maneira concreta mediante a qual uma legislação pode
defender, do melhor modo possível, estes valores em uma determinada situação
civil e política.
As fronteiras são
sempre terrenos falaciosos.
[Para o Cardeal] O
candente problema ético se refere à «vida humana».
Recorda você com
toda razão que «todos consideramos já como ser humano ao recém-nascido unido
ainda ao cordão umbilical». Entretanto, «até quando podemos nos retroagir?».
Onde estão os «limites»?
Mas todos sabemos
que hoje se conhece melhor a dinâmica do desenvolvimento humano e a claridade
de sua determinação genética a partir de um momento que, teoricamente ao menos,
pode ser precisado. A partir da concepção nasce, com efeito, um novo ser. Novo
significa distinto dos dois elementos que, ao unir-se, formaram-lhe.
Se nisto consiste o
problema ético e humano, o problema civil conseqüente será como ajudar às
pessoas e à sociedade inteira a evitar, tanto quanto possível, tais desgarrões?
Como apoiar a quem se encontra em um aparente ou real conflito de deveres, para
que não resulte esmagado?
EU:
Homens e mulheres segundo a Igreja
Os laicos não têm
direito a criticar o modo de viver de um crente salvo no caso, como sempre, de
que vá contra as leis do Estado (por exemplo, a negativa a que aos filhos
doentes lhes pratiquem transfusões de sangue) ou se oponha aos direitos de quem
professa uma fé distinta.
[Interessante ou
hipócrita. A verdade religiosa vai até onde o Estado se impõe?]
O ponto de vista de
uma confissão religiosa se expressa sempre através da proposta de um modo de
vida que se considera ótimo, enquanto que do ponto de vista laico deveria considerar-se
ótimo qualquer modo de vida que seja conseqüência de uma livre eleição, sempre
que esta não impeça as eleições de outros.
Há atos sociais
(completamente laicos) para os quais se exige o smoking, e sou eu quem devo
decidir se quero me adequar a um costume que me irrita, porque tenho uma razão impelente para participar no ato, ou se prefiro afirmar
minha liberdade ficando em minha casa.
Mas, inclusive um
crente, admite que os autores bíblicos escreviam adaptando tanto a crônica dos
acontecimentos, como os argumentos à possibilidade de compreensão e aos
costumes das civilizações às quais se dirigiam, por isso se Josué houvesse
dito; «Detenha, Oh, terra!» ou inclusive «Que se suspenda a lei newtoniana da
gravitação universal!», tivessem-no tomado por louco. Jesus disse que terei que
pagar os tributos ao César, porque era o que lhe sugeria a situação política do
Mediterrâneo, mas isso não significa que um cidadão europeu tenha hoje o dever
de pagar impostos ao último descendente dos Autríacos,
e qualquer sacerdote perspicaz lhe dirá que irá ao inferno (ou assim o espero)
se sonegar ao devido tributo ao Ministério da Fazenda de seu país respectivo.
O nono mandamento
proíbe desejar à mulher de outro, mas o magistério da Igreja jamais pôs em
dúvida que se referisse, por sinédoque, também às mulheres, proibindo-lhes
desejar ao homem de outra.
São Tomás, em que
pese a tudo, sabe ir além da inevitável antropologia de seu tempo. Não pode
negar que os varões são superiores e mais aptos para a sabedoria que as
mulheres, mas se esforça em mais de uma ocasião em resolver a questão de que às
mulheres foi concedido o dom da profecia, e às abadessas a direção de almas e
do ensino, e o faz com sofismas elegantes e sensatos.
[Aí uma das bases
do islamismo, a inferioridade das mulheres.]
É certo que, em uma
questão que não recordo, São Tomás usa o argumento propter
libidinem (9) [Por causa da luxúria] , em outras
palavras, que se o sacerdote fosse mulher, os fiéis (varões!) excitar-se-iam ao
vê-la.
CMM:
A Igreja não satisfaz expectativas, celebra
mistérios
A pergunta, pois,
que tenho intenção de lhe fazer se refere ao fundamento último da ética para um
laico. Eu gostaria que todos os homens e as mulheres deste mundo tivessem
claros fundamentos éticos para seu obrar e estou convencido de que existem não
poucas pessoas que se comportam com retidão, pelo menos em determinadas
circunstâncias, sem referência a um fundamento religioso da vida. Todavia, não
consigo compreender que tipo de justificação última dão a seu proceder.
[Ai toda a
arrogância do religioso e, em última análise, de sua total contradição, pois
conclui-se que o homem é produto do mal e, portanto, precisa da religião para
poder lhe extrair algo de bom. O laico é, por definição, impuro, laico somos
todos nós no nascimento!!!]
Tudo isto não o
digo nem em defesa dos integristas, nem para favorecer um ou outro penteado, a
não ser, para indicar que às vezes não resulta fácil saber o que é que a Bíblia
quer dizer sobre certos pontos concretos, nem decidir se sobre determinado
argumento se fala de acordo com os usos de seu tempo, ou para assinalar uma
condição permanente do povo de Deus.
[Ou seja, as
escrituras refletem as culturas existentes no tempo em que cada parte tenha
sido escrita, ou são simplesmente regras doutrinárias!!! Nada a ver com “a
palavra de Deus” como verdade inquestionável.]
Neste sentido,
resulta inegável que Jesus Cristo escolheu aos doze apóstolos.
[Não poderia ser
diferente, dado que à época, as mulheres não tinham qualquer participação na
vida política ou filosófica.]
[Segue outro texto
do Cardeal]
CMM:
Onde encontra o laico a luz do bem?
Estou convencido,
além disso, de que existem não poucas pessoas que se comportam com retidão,
pelo menos nas circunstâncias ordinárias da vida, sem referência a nenhum
fundamento religioso da existência humana. Sei também que existem pessoas que,
sem acreditar em um Deus pessoal, chegam a dar a vida para não abdicar de suas
convicções morais. Todavia, não consigo compreender que tipo de justificação última
dão a seu proceder.
[Ele esquece de
salientar que, de outro lado, os religiosos agem com base no mal o tempo todo,
de tão modo freqüente que precisam se penitenciar todos os domingos.]
Resulta claro e
óbvio que também uma ética laica pode achar e reconhecer de fato normas e
valores válidos para uma reta convivência humana. [O Estado se serve exatamente
disto para regular a convivência política, social e do trabalho.]
E isso sobretudo
quando abandonamos o âmbito das leis civis ou penais e, acima delas, entramos
na esfera das relações interpessoais da responsabilidade, que cada um tem para
seu próximo acima das leis escritas, na esfera da gratuidade e da
solidariedade.
É possível um
diálogo parecido na relação entre crentes e não crentes sobre temas
éticos,
especialmente entre católicos e laicos?
Reconheço,
portanto, que existem numerosas pessoas que atuam de maneira eticamente correta
e que em ocasiões, realizam inclusive atos de elevado altruísmo sem terem, ou
sem serem conscientes de ter um fundamento transcendente para seu
comportamento, sem fazerem referência nem a um Deus criador, nem ao anúncio do
Reino de Deus com suas conseqüências éticas, nem à morte e a ressurreição de
Jesus e ao dom do Espírito Santo, nem à promessa da vida eterna; precisamente
deste realismo é de onde extraio eu a força dessas convicções éticas que quero,
em minha debilidade, que constituíram sempre a luz e a força de meu obrar.
E como decidir com
certeza, em cada caso concreto, o que é altruísmo e o que não é?
Custa-me muito
compreender como uma existência inspirada nestas normas (altruísmo,
sinceridade, justiça, solidariedade, perdão) pode sustentar-se longo tempo e em
qualquer circunstância, se o valor absoluto da norma moral não está baseado em
princípios metafísicos, ou sobre um Deus pessoal.
[O que há de comum
entre um laico e um crente, é que ambos nasceram iguais em princípios pois
naturais da constituição do DNA.]
[E ele pergunta:] O
que cimenta, com efeito, a dignidade humana se não o fato de que todos os seres
humanos estão abertos para algo mais elevado e maior que eles mesmos? [Nem
todos. Ou seja, para ele não pode existir um homem bom por natureza, é
necessário que, para ser bom, aceite a existência de Deus.]
UE
Quando outros entram em cena, nas a ética