ANOTAÇÕES DE:
CARTAS DO PEQUENO PRÍNCIPE
TÍTULO DO ORIGINAL: LETTRE A UN OTAGE/LETTRES A SA MÉRE/LETTRES DE JEUNESSE
AUTOR: ANTOINE DE SAINT-EXUPÉRY
LIVROS DE SAINT-EXUPÉRY
VÔO NOTURNO
CORREIO SUL
TERRA DOS HOMENS
O PEQUENO PRÍNCIPE
CIDADELA
EM CARTA A UM REFÉM
É preciso amamentar durante muito tempo uma criança antes que ela exija. É preciso cultivar durante muito tempo um amigo antes que ele reclame seu crédito de amizade. É preciso arruinar-se durante gerações consertando o velho castelo que se desmorona, para aprender a amá-lo.
O essencial é viver para a volta.
Até mesmo um silêncio não se parece com outro silêncio.
Há um silêncio da paz, quando as tribos se conciliam, quando a noite traz sua frescura e parece que a gente pára, as velas dobradas, em um porto tranqüilo. Há um silêncio do meio-dia, quando o sol impede os pensamentos e os movimentos. Há um falso silêncio, quando o vento do Norte amaina e o aparecimento de insetos arrancados como pólen, dos oásis do interior, anuncia a tempestade de Leste, portadora de areia. Há um silêncio de conspiração, quando se sabe que uma tribo longínqua fermenta. Há um silêncio de mistério, quando os árabes se reúnem em seus indecifráveis conciliábulos. Há um silêncio tenso, quando o mensageiro demora a voltar. Um silêncio agudo quando, à noite, a gente prende a respiração para escutar. Um silêncio melancólico, se a gente se lembra dos que ama.
Cada estrela fixa uma direção verdadeira. São, todas elas, estrelas de Magos. Servem todas a seu próprio deus.
O homem é governado pelo Espírito. Eu valho, no deserto, o que valem minhas divindades
Como fazem pouco ruído os verdadeiros milagres! Como são simples os acontecimentos essenciais! Há tão pouco a dizer sobre o instante que desejo recordar que é preciso que eu o reviva em sonho, e fale a esse amigo.
Um sorriso é freqüentemente o essencial. Pagam-nos com um sorriso. Recompensam-nos com um sorriso. Animam-nos com um sorriso. E a qualidade de um sorriso pode fazer-nos morrer. Entretanto, como esta qualidade nos liberta tão bem da angústia dos tempos presentes, dava-nos segurança, esperança, paz, sinto hoje a necessidade, para tentar exprimir-me melhor, de contar também a história de um outro sorriso.
A maturidade que a gente adquire vai se fazendo lentamente. E se faz contra tantos obstáculos vencidos, contra tantas doenças graves curadas, contra tantos sofrimentos apaziguados, contra tantos desesperos superados, contra tantos riscos, cuja maior parte escapou à consciência. Faz-se através de tantos desejos, tantas esperanças, tantos remorsos, tantos esquecimentos, tanto amor. (....) Apesar das ciladas, dos tropeços, dos desvios, agente continua a avançar, de qualquer jeito, com dificuldade, como uma boa carroça.
Foi então que aconteceu o milagre. Oh! um milagre muito discreto. Eu não tinha cigarros. Como um de meus carcereiros fumava, pedi-lhe, com um gesto, que me desse um e esbocei um vago sorriso. O homem se espreguiçou primeiro, passou lentamente a mão na testa, olhou não mais para minha gravata, mas para meu rosto e, para grande espanto meu, esboçou, ele também, um sorriso. Foi como o nascer do dia.
Esse milagre não resolveu o drama, mas simplesmente eliminou-o, como a luz elimina a sombra. Nenhum drama existia mais. Esse milagre não modificou nada visível. A péssima lâmpada de petróleo, a mesa coberta de papéis, os homens encostados na parede, a cor dos objetos, o odor, persistiam. Mas todas as coisas se transformaram em sua substância. Aquele sorriso me libertou. Era um sinal tão definitivo, tão evidente em suas próximas conseqüências, tão irreversível quanto o aparecimento do sol Abria uma nova era. Nada se havia modificado, tudo estava modificado. A mesa coberta de papéis encheu-se de vida. A lâmpada de petróleo encheu-se de vida. As paredes tinham vida. O aborrecimento que se desprendia dos objetos mortos daquele porão abrandou-se como por encanto. Era como se um sangue invisível tivesse recomeçado a circular, ligando todas as coisas a um mesmo corpo e restituindo-lhes uma significação.
Nós, os homens, tomamos ares importantes, mas conhecemos, no íntimo do coração a hesitação, a dúvida, a tristeza...
O verdadeiro prazer é o prazer de conviver.
Os cuidados dispensados a um doente, o acolhimento dado ao proscrito, até mesmo o perdão, só valem graças ao sorriso que ilumina a festa. Reunimo-nos no sorriso acima das línguas, das castas, dos partidos. Somos os fiéis de uma mesma Igreja, os outros e seus costumes, eu e os meus.
A vida cria a ordem mas a ordem não cria a vida.
Somos, uns para os outros, peregrinos que, ao longo de diversos caminhos, sofremos pelo mesmo fim.
Incapazes de se impor pela evidência, as religiões políticas apelam para a violência. E eis que, dividindo-nos quanto aos métodos, arriscamo-nos a não mais reconhecer que caminhamos para o mesmo fim.
O viajante que sobe uma montanha na direção de uma estrela, se se deixa absorver pelos problemas da escalada, está arriscado a esquecer qual a estrela que o guia.
Posso combater, em nome de meu caminho, o caminho que um outro escolheu. Posso criticar a orientação de sua razão. A orientação da razão é incerta. Mas devo respeitar esse homem, no plano do Espírito, se ele caminha em direção à mesma estrela.
Respeito pelo Homem! Respeito pelo Homem!... Se o respeito pelo homem estiver estabelecido no coração dos homens, os homens acabarão por estabelecer, em retribuição, o sistema social político ou econômico que consagrará esse respeito. Uma civilização funda-se antes de tudo na substancia. Ela é, antes de tudo, no homem, o desejo cego de um certo calor. Em seguida, o homem, erro em erro, encontra o caminho que conduz ao fogo.
É sem dúvida por isso, meu amigo, que sinto tamanha necessidade de sua amizade. Tenho sede de um companheiro que, acima do litígios da razão, respeito em mim o peregrino desse fogo. Sinto às vezes a necessidade de gozar, antecipadamente, o calor prometido, e de descansar, um pouco fora de mim mesmo, nesse encontro que será nosso.
Estou tão cansado das polêmicas, dos exclusivismos, dos fanatismos! Posso entrar em sua casa sem vestir um uniforme, sem submeter-me à recitado de um Alcorão, sem renunciar a qualquer coisa de minha pátria interior. Junto de você, não tenho de me desculpar, não tenho de pedir, não tenho de provar; encontro a paz, como em Tournus. Acima de minhas palavras insensatas, acima dos raciocínios que podem enganar-me, você considera em mim simplesmente o Homem. Você respeita em mim o embaixador de crenças, de costumes, de amores particulares. Se sou diferente de você, em vez de lesá-lo, aumento-o. Você me interroga como se interroga o viajante.
Eu, que tenho, como todos, a necessidade de ser reconhecido, sinto-me puro em você e vou a você. Tenho necessidade de ir aonde sou puro. Não foram minhas fórmulas nem minhas atitudes que disseram a você quem eu era. Foi a aceitação do que sou que fez você indulgente, quando necessário, para com essas atitudes e essas fórmulas. Eu lhe agradeço ter-me recebido tal qual sou. Que farei com um amigo que me julga? Se acolho um amigo à minha mesa, convido-o a sentar-se se é manco e não lhe peço para dançar.
É sempre nos porões da opressão que se preparam as novas verdades.
Porque serão certamente vocês [os reféns] que nos ensinarão. Não cabe a nós levar a flama espiritual aos que já a nutrem com sua própria substância, como de uma cera. Vocês talvez não lerão nossos livros. Talvez não escutarão nossos discursos. Talvez rejeitarão nossas idéias. Nós não fundamos a França. Podemos apenas servi-la. Seja o que for que façamos, não teremos direito a nenhum reconhecimento. Não há comparação entre o combate livre e a opressão na noite. Não há comparação entre o ofício de soldado e o ofício de refém. Vocês é que são os santos.
EM CARTAS A SUA MÃE (E IRMÃS E CUNHADO)
Sou duro comigo mesmo e tenho bem o direito de renegar nos outros o que renego ou corrijo em mim.
Não se trata apenas de aviação. O avião não é um fim, é um meio. Não é pelo avião que se arrisca a vida, também não é pelo arado que o lavrador trabalha. (....) Sou feliz em meu trabalho, sinto-me o camponês das estrelas. (....) não é o perigo que eu amo, é a vida.
É terrível deixar atrás de si alguém que tem necessidade da gente como Consuelo. Sente-se a imensa necessidade de voltar para proteger e abrigar, e a gente arranca as unhas contra esta areia que nos impede de cumprir o dever, e a gente sente-se capaz de remover montanhas. Mas era de você que eu tinha necessidade; você [a mãe de Antoine] é que precisava proteger-me e abrigar-me, e eu a chamava com o egoísmo de uma cabrinha.
Desde que sou parte deles, não renegarei jamais os meus, façam o que façam. Nunca falarei contra eles diante de outros. Se for possível defendê-los, defendê-los-ei. Se me cobrirem de vergonha, guardarei esta vergonha em meu coração e me calarei. Seja qual for meu pensamento, não servirei jamais de testemunha contra eles...
"O que é atrair", pergunta o Pequeno Príncipe. E a raposa responde: "É criar relações."
Na última carta que se tem de Antoine, há este trecho:
"Se eu voltar, minha preocupação será: Que é preciso dizer aos homens?"
A gente aprende a escrever, a cantar, a falar bem, a emocionar-se, nunca a pensar. E as palavras nos conduzem, e elas deturpam até mesmo os sentimentos.
E espero encontrar alguma jovenzinha bem bonita e bem inteligente, e cheia de encantos, e alegre, e repousante, e fiel, e... assim não a encontrarei.
E faço cortes monótonas a Colettes, Paulettes, Suzys, Daisys, a Gabys, que são feitas em série e cansam no fim de duas horas. São esperas horríveis.
Já não posso suportar o fato de não encontrar o que procuro em algum lugar e fico sempre decepcionado quando descubro que uma mentalidade que eu achava interessante é apenas um mecanismo fácil de decifrar; fico desgostoso. E quero mal a esta pessoa. Elimino uma porção de pessoas e uma porção de gente, é mais forte que eu.
Mamãe, tenho amigos que me conhecem bem melhor que eles e que me adoram e a quem eu retribuo. É bem uma prova de que valho alguma coisa. Para a família, sou um ser superficial, tagarela e gozador, eu, que só procuro no prazer qualquer coisa para aprender e não tolero as boites, eu que quase não abro a boca, porque as conversas inúteis me aborrecem. Nem mesmo quero fazê-los ver a verdade, é bem supérfluo.
Mamãe, sou, antes de tudo, duro comigo mesmo e tenho bem o direito de renegar nos outros o que renego e corrijo em mim. Não tenho mais nenhuma vaidade de pensamento, que faz com que a gente se interponha entre o que vê e o que escreve.
Quando eu voltar, poderei ser um filho como desejo e convidá-la a jantar e proporcionar-lhe uma porção de prazeres, pois quando você veio a Toulouse, senti tanto embaraço e tristeza por nada poder fazer por você que me tornei mal-humorado e triste, e não soube ser terno.
Foi um pouco para Consuelo que voltei, mas foi por você, mamãe, que voltei. Você, tão fraca, sabia até que ponto é anjo da guarda, e forte, e sábia e tão cheia de bênçãos que a gente ora a você, sozinho, na noite? [Nesta época Saint-Exu tem 36 anos. Ele escreveu esta carta 2 dias depois de ter sido encontrado no deserto da Líbia, onde ficou perdido por 3 dias.]
Quando será possível dizer aos que amamos que os amamos? [Este questionamento foi feito na última carta que escreveu a sua mãe, em julho [???] de 1944. Dias depois desapareceria num vôo de reconhecimento sobre o Mediterrâneo]
CARTAS DA JUVENTUDE
Antes de escrever é preciso viver. Escrever é uma conseqüência.
Se a conversa cai por acaso num assunto que me toca de perto torno-me intolerante e ridículo e fica impossível discutir comigo.
Somos diferentes para cada um de nossos amigos porque cada um desperta em nós afinidades diferentes e um indivíduo é para outro o conjunto de reações que desperta nele como, no plano material, uma mesa é a soma das reações visuais e táteis que desperta em nós.
A primeira qualidade de um homem inteligente é compreender a linguagem dos outros e saber falar-lhes na mesma linguagem.
As pessoas, se procuram aumentar a memória, os conhecimentos, a habilidade verbal, quase nunca procuram cultivar a inteligência. Procuram raciocinar com exatidão mas não a pensar com exatidão. Confundem tudo.
O que é obscuro atrai mais que o que é claro. Entre duas explicações de um fenômeno, as pessoas, por instinto, se interessam pelo oculto. Porque a outra, a verdadeira, é simples e sem graça e não faz os cabelos ficarem de pé. (....) Muitos erros de julgamento são determinados por essa necessidade. A necessidade de apossar-se das idéias não para compreendê-las mas para emocionar-se com elas.
Não há nenhum interesse em seduzir através de belas frases contraditórias seguidas de concessões polidas. As pessoas que dizem "estamos trocando idéias" me aborrecem.
Gosta das pessoas estreitamente presas à vida pela necessidade de comer, de alimentar os filhos e de chegar até o mês seguinte. Sabem mais que qualquer outra pessoa. Ontem, fui no ônibus ao lado de uma mulher humilde cercada de cinco crianças. Ela lhes ensinava muita coisa e a mim também. A sociedade nunca me ensinou nada.
Passei o dia comprando fósforos, cigarros e selos. A caixeira daqui do lado é tão bonita. Já tenho no quarto mais de trinta caixas de fósforos e selos para quarenta anos. Resultado melancólico de oito dias de amor.
É um encanto uma caixeira. O balcão é belo como um trono. A gente se sente muito longe muito pequeno. E escuta com embriaguez "quarenta cêntimos...". E procura todas as palavras de amor que sabe.
Pergunto a mim mesmo em que pensa uma caixeira?
Talvez em nada, mas tem um ar de quem pensa.
Sinto uma necessidade demasiado grande de ser livre.
A maior felicidade é ser um bom sujeito idiota, que volta da caça e esfrega as mãos diante do fogo dizendo: "Arre!"
Apoio-me bem no encosto e piloto o avião observando o ponteiro do vento. Se desço verticalmente ele sobe. Se seguro demasiado o avião ele morre suavemente. Depois as últimas casas, as últimas árvores abandonadas, perdidas atrás: a aterrissagem. É delicioso aterrissar. Em seguida a gente se aborrece. Não encontra cartas. Não lhe perdôo isso.
Neste tempo tão agradável todo o mundo tem um segredo mas é o mesmo. Pois a gente olha uns para os outros e sorri. E para sorrir não é necessário saber três palavras de espanhol, então eu falo...
Pois leio as cartas como um traidor. Procuro a expressão e a entonação e o sorriso. E desepera-me não saber pronunciar "o tempo está bom" isso pode significar tantas coisas. "Está chovendo" também. Isto pode significar "que felicidade! está chovendo. Está chovendo mas pouco importa..." ou então "Meu Deus, como você me aborrece" ou então ainda "não sei por que lhe escrevo. Não tenho nada a dizer-lhe. Está chovendo".
Ganho 25 mil francos por mês com os quais não sei o que fazer e que me cansa gastar, e começo a abafar em um quarto onde acumulo mil objetos que jamais me servirão, que me aborrecem desde que passam a ser meus, e no entanto todo dia aumento-lhes o número. ¾ Sem dúvida faço sem sabê-lo oferendas a um deus desconhecido.
Não deixe de dizer-me quando chegará. (....) Serei encantador. Levá-la-ei para beber, ler-lhe-ei meu segundo livro, convidá-la-ei a almoçar e levá-la-ei para voar sobre o Rio. Talvez serei melancólico por causa da criança que fui.
Resoluções prudentes, cartas rasgadas, durante dois anos quantas cartas rasgadas ¾ e depois junto ao fogo, à meia-noite, todas as resoluções cedem.
Sem dúvida houve aquele truque pouco leal da canção que Dalila cantava para cortar os cabelos de Sansão. Sansão desconfiava do truque, sabe? Mas aquela ária agradava-lhe muito mais que sua cabeleira.
A noite continua suavemente e suavemente adormeço. E desconfio de minhas confidências. Inquieta-me ter esquecido meus grandes rancores: isto é grave. Talvez esteja também encantado com minha fraqueza. Não quero saber se estou ou não preso na armadilha, Sansão que não se atreve a mover-se, quebrar o encanto, Sansão maravilhado de ser aquele pagem preso numa armadilha para passarinho.