EXTRATO DE: AMOR LÍQUIDO

Autor: Zygmunt Bauman

Ed. Zahar – 2003/2004/2019

 

 

[Da observação de uma pesquisa com ratos] A incapacidade de escolher entre atração e repulsão, entre esperanças e temores, redundava na incapacidade de agir. De modo diferente dos ratos, os seres humanos que se veem em tais circunstâncias podem pedir ajuda  especialistas (...). O que esperam ouvir deles é algo como a solução do problema de quadratura do círculo: comer o bolo e ao mesmo tempo conservá-lo; desfrutar das doces delicias de um relacionamento evitando, simultaneamente, seus momentos mais amargos e penosos, satisfazer sem oprimir...

 

Os relacionamentos são como vitamina C: em altas doses, provocam náuseas e podem prejudicar a saúde.

 

Se você deseja relacionar-se, mantenha distância; se quer usufruir do convívio, não assuma nem exija compromissos. Deixe todas as portas sempre abertas.

 

Será que os habitantes de nosso líquido mundo moderno não são exatamente como os de Leônia (uma das cidades invisíveis de Ítalo Calvino), preocupados com uma coisa e falando outra? Eles garantem que seu desejo, paixão, objetivo ou sonho é "relaciona-se". Mas será que na verdade não estão preocupados principalmente em evitar que suas relações acabem congeladas e coaguladas?

 

Em vez de relatar suas experiências (...) as pessoas falam cada vez mais (...) em conexões, ou "conectar-se" e "ser conectado".

 

Uma "rede" serve de matriz tanto para conectar quanto para desconectar (...).

 

(No cenário da vida moderna) se espera e se deseja que as "possibilidades românticas" surjam e desapareçam numa velocidade crescente em volume cada vez maior.

 

Um jovem de 28 anos apontou uma vantagem decisiva da relação eletrônica: "Sempre se pode apertar a tecla de deletar."

 

(...) quanto mais velho você é, mais sabe que os pensamentos, embora possam parecer grandiosos, jamais serão grandes o suficiente para abarcar a generosa prodigalidade da experiência humana, muito menos para explicá-la.

 

Não se pode aprender a amar, tal como não se pode aprender a morrer.

 

A experiência dos outros só pode ser conhecida como a história manipulada e interpretada daquilo por que eles passaram.

 

Noites avulsas de sexo são referidas pelo codinome de "fazer amor".

 

É da natureza do amor ser refém do destino.

 

(...) o fim de uma criação nunca é certo.

 

Amar significa abrir-se ao destino, em que o medo se funde ao regozijo num amálgama irreversível.

 

Quando se trata de amor, posse, poder, fusão e desencanto são os Quatro Cavaleiros do Apocalipse.

 

Todo amor luta para enterrar as fontes de sua precariedade e incerteza, mas, se obtém êxito, logo começa a se enfraquecer - e definhar.

 

Enquanto vive, o amor paira à beira do malogro.

 

Desejo é vontade de consumir.

 

Diz Antígona: "Oh, mas eu não teria feito a coisa proibida/Por nenhum marido nem por nenhum filho/ Para quê? Eu poderia ter tido outro marido/ e por meio dele outros filhos, se perdesse algum;/ mas, perdidos o pai e a mãe, onde eu conseguiria/ outro irmão?" Perder um marido não é o fim do mundo. Maridos são apenas temporários.

 

O futuro é assustadoramente desconhecido e impenetrável. (...) Para Little Mo "ninguém pode prever o que será a partir daquilo que é" - mas ninguém pode suportar com leveza essa impossibilidade.

 

O convívio do "viver juntos" e a proximidade consangüínea são dois universos diferentes, com espaços-tempos distintos, cada qual um universo completo, com suas leis e lógicas próprias.

 

Benedict Anderson cunhou o termo "comunidade imaginada" para dar conta do mistério da auto-identificação com uma ampla categoria de desconhecidos com quem se acredita compartilhar alguma coisa suficientemente importante para que se fale deles como um "nós" do qual eu, que falo, sou parte.

 

As "comunidades da mesmidade", predeterminadas, mas aguardando serem reveladas e preenchidas com matéria sólida, estão cedendo vez a "comunidades de ocasião", que se espera serem autoconstruídas em torno de eventos, ídolos, pânicos ou modas.

 

Chris Moss: por meio de "nossas conversas" em chats, celulares, serviços de texto (...) a introspecção é substituída por uma interação frenética e frívola que revela nossos segredos mais profundos juntamente com nossas listas de compras. (...) Se você interromper a conversa, está fora. O silencio equivale à exclusão.

 

[Agora há] a possibilidade fascinante que se encontra bem ali na esquina é a oportunidade de "escolher um filho num catálogo de doadores atraentes" (...) e adquirir a criança escolhida no momento preferido.

 

Nos compromissos duradouros, a líquida razão moderna enxerga a opressão; no engajamento permanente percebe a dependência incapacitante.

 

O respeito é, afinal, apenas um dos lados da faca de dois gumes da atenção, cuja outra ponta é a opressão.

 

A vida consumista favorece a leveza e a velocidade. E também a novidade e a variedade que elas promovem e facilitam. É a rotatividade, não o volume de compras, que mede o sucesso na vida do Homo consumens.

 

As vendas crescem graças a suprimentos de angústia que excedem em muito a capacidade de cura do produto.

 

[O papel dos cartões de crédito] é evitar a espera para satisfazer os desejos. Eles encurtam a distância entre o impulso e sua satisfação (...).

 

Sigusch: se a substância da atividade sexual é a obtenção do prazer instantâneo, "então o mais importante não é o que se faz, mas simplesmente que aconteça".

 

Não importa muito se as predileções sexuais são "dons da natureza" ou "construtos culturais". O que realmente importa é se cabe ao Homo sexualis determinar qual ou quais das múltiplas identidades sexuais melhor se ajusta a eles ou ela, ou se, tal como o Homo sapiens no casa da "comunidade de nascimento", ele ou ela está destinado(a) a abraçar esse destino e viver sua vida de uma forma que transforme uma sina inalterável numa vocação pessoal.

 

A vida do Homo sexualis é carregada de ansiedade. Há sempre a suspeita de que se esteja vivendo uma mentira ou um equivoco; (...) de que não se cumpriu uma obrigação vital para o eu autentico da própria pessoa (...).

 

(...) o fogo sexual agora deve ser novamente insuflado pelos esforços conjuntos de nossas ginásticas miraculosas e de nossos remédios maravilhosos.

 

O Homo sexualis não é uma condição, muito menos uma condição permanente e imutável, mas um processo, cheio de tentativas e erros, viagens exploratórias arriscadas e descobertas ocasionais, intercaladas por numerosos tropeços, arrependimentos por oportunidades perdidas e alegrias por prazeres ilusórios.

 

Quando a qualidade o decepciona, você procura a salvação na quantidade. Quando a duração não está disponível, é a rapidez da mudança que pode redimi-lo.

 

Seu celular está sempre tocando (ou assim você espera).

 

A distância não é obstáculo para se entrar em contato - mas entrar em contato não é obstáculo para se permanecer à parte.

 

A solidariedade humana é a primeira baixa causada pelo triunfo do mercado consumidor.

 

O preceito fundador da civilização só pode ser aceito como algo que "faz sentido" e adotado e praticado se nos rendermos à exortação teológica credere quia absurdum - acredite porque é absurdo.

 

Quanto menor a probabilidade de uma norma ser obedecida, maior a obstinação com que tenderá a ser reafirmada.

 

(...) a sobrevivência não precisa de mandamentos, já que outras criaturas (não humanas) passam muito bem sem eles, obrigado.

 

O preceito do amor ao próximo desafia e interpela os instintos estabelecidos pela natureza, mas também o significado da sobrevivência por ela instituído, assim como o do amor-próprio que o protege.

 

As pessoas tendem a tecer suas memórias do mundo utilizando o fio de suas experiências.

 

A vida é um jogo duro para pessoas duras. Cada jogo começa do zero, méritos [ou deméritos] passados não contam, você tem tanto valor quanto os resultados do seu último duelo.

 

Independente do estratagema empregado, dos trunfos dos sobreviventes e das deficiências dos perdedores, a história da sobrfevivencia tende a se desenvolver da mesma e monótona maneira: num jogo de sobrevivência, confiança, compaixão e clemência são fatores suicidas. Se você não for mais furo e menos escrupuloso do que todos os outros, será liquidado por eles, com ou sem remorso. Estamos de volta à triste verdade do mundo darwiniano: é o mais apto que invariavelmente sobrevive. Ou melhor, a sobrevivência é a derradeira prova de aptidão.

 

(...) as coisas assumirão seu próprio curso independente daquilo que fazemos ou poderíamos, com sensatez, imaginar fazer.

 

O medo do desconhecido, mesmo se subliminar, busca desesperadamente escoadouros confiáveis. As ansiedades tendem a ser descarregadas sobre os "forasteiros" (...). Quando se expulsa das casas e das lojas uma categoria selecionada de "forasteiros", o fantasma atemorizante da incerteza é exorcizado por algum tempo. (...) o alívio é momentâneo e as esperanças se desvanecem, tão logo se apresentam.

 

O estranho é por definição, um agente movido por intenções que na melhor das hipóteses se poderia adivinhar, mas nunca saber com certeza.

 

Compartilhar o espaço com estranhos, (...) é uma condição da qual os habitantes das cidades consideram difícil, talvez impossível escapar. (...) Mas o modo como os habitantes de cada cidade se conduzem para satisfazê-la é questão de escolha. E esta é feita diariamente - por ação ou omissão, desígnio ou descuido.

 

A cerca separa o "gueto voluntário" dos ricos e poderosos dos muitos guetos forçados que os despossuídos habitam.

 

As novas construções (...) são "espaços interditados" - "planejados para interceptar, repelir ou filtrar os usuários potenciais". Explicitamente, o propósito destes espaços é dividir, segregar e excluir - e não construir pontes, (...) facilitar a comunicação ou, de alguma outra forma, aproximar os habitantes da cidade.

 

A mixofobia se manifesta no impulso que conduz a ilhas de semelhança e mesmidade em meio a um oceano de variedade e diferença.

 

Richard Sennet: "o sentimento de nós é que expressa um desejo de ser semelhante, é uma forma de os homens evitarem a necessidade de examinarem uns aos outros com maior profundidade". (...) "Sentir que existem vínculos comuns sem uma experiência comum ocorre, em primeiro lugar, porque os homens têm medo da participação, dos perigos e desafios que ela traz, de sua dor."

 

Quanto mais as pessoas permanecem num ambiente uniforme (...) mais tornam-se propensas a "desaprender" a arte de negociar um modus covivendi e significados compartilhados.

 

 

A cidade atrai e repele [no fim, tudo é física!]

 

A homogeneidade social do espaço, enfatizada e fortalecida pela segregação espacial, reduz a tolerância de seus moradores à diferença e assim multiplica as possibilidades de reações mixofóbicas fazendo a vida urbana parecer mais "propensa ao risco" e portanto mais angustiante, um lugar de mais segurança, agradável e fácil de levar.

 

A "fusão" exigida pela compreensão mútua só pode ser o resultado da experiência compartilhada, e esta é inconcebível sem que haja um espaço compartilhado.

 

Nesta terra fatiada em Estados soberanos,os sem-teto são também sem-direitos, e sofrem, não por não serem iguais perante a lei, mas porque não existe lei que se aplique a eles e nas quais possam se pautar, ou a cuja proteção possam recorrer em seus protestos contra a rigorosa condição a que foram submetidos.