EXTRATO DE: O ACASO E A NECESSIDADE
Jaques Monod – Ed. Vozes – 1971
“Tudo o que existe no universo é fruto do acaso e da necessidade.” – Demócrito
A própria ingenuidade de um olhar novo – e o da ciência o é sempre – às vezes pode lançar uma nova luz sobre antigos problemas.
A modéstia convém ao sábio, mas não às ideias que o habitam e que ele deve defender.
O cristal é a expressão macroscópica de uma estrutura microscopia.
Teleonomia: Qualidade da matéria viva no que tange a ela materializar um projeto, uma finalidade.
Todo projeto particular, qualquer que seja, só tem sentido como parte de um projeto mais geral.
O projeto teleonômico consiste na transmissão, de uma geração à outra, do conteúdo de invariância característico da espécie.
Podemos considerar que o nível teleonômico de uma espécie dada corresponde à quantidade de informação que deve ser transferida, em média, por individuo, para garantir a transmissão à geração seguinte do conteúdo específico de invariância reprodutiva.
Essa grandeza, teoricamente definível, na prática não é mensurável.
Paradoxo da invariância: princípio que impõe que todo sistema macroscópico só pode evoluir no sentido da degradação da ordem que o caracteriza.
Entropia: desordem.
Epistemologia: Estudo das ciências, no que cada uma, e o seu conjunto, tem por objeto apreciar seu valor para o espírito humano; teoria do conhecimento; gnoseologia.
A ideia darwiniana de que a aparição, a evolução, o refinamento progressivo de estruturas cada vez mais intensamente teleonômicas, são devidos a perturbações que ocorrem numa estrutura já possuindo a propriedade de invariância, capaz portanto de conservar o acaso e, por aí, de submeter seus efeitos ao jogo da seleção natural.
Teoria vitalista – supõe que um princípio teleonômico só opera no interior da biosfera, da matéria viva.
Teoria animista – supõe que há um princípio teleonômico universal, responsável tanto pela evolução cósmica quanto pela da biosfera, em cujo interior ele se exprimiria somente de modo mais preciso e intenso.
O que nossos ancestrais viam no universo primeiramente? Animais, plantas, seres cuja natureza, semelhante à sua, podiam adivinhar de imediato. (...) [nestes casos] O projeto explica o ser e o se só tem sentido por seu projeto.
Mas em torno de si, eles também viam outros objetos: rochedos, rios, montanhas, a tempestade, a chuva, os corpos celestes. (...) Destarte, nossos ancestrais sabiam ver nas formas e nos acontecimentos da natureza a ação de forças benévolas ou hostis, mas nunca indiferentes, nunca totalmente estranhas.
Para Teilhard de Chardin não há matéria inerte e, portanto, nenhuma distinção de essência entre matéria e vida.
Para dar sentido à natureza, para que o homem dela nãop fosse separado por um abismo insondável, para torná-la enfim decifrável e inteligível, era preciso proporcionar-lhe um projeto.
Dialética: Maneira de filosofar que procura a verdade por meio de oposição e conciliação de contradições (lógicas ou históricas).
Epígono: Representante da geração seguinte. / Seguidor, discípulo de um grande mestre nas letras, nas ciências, nas artes.
Uma teoria universal evidentemente deveria envolver ao mesmo tempo a relatividade, a teoria das quanta, uma teoria das partículas elementares.
Todas as religiões, quase todas as filosofias, inclusive uma parte da ciência, testemunham o incansável e heroico esforço da humanidade em negar desesperadamente sua própria contingencia.
A noção de teleonomia implica a ideia de uma atividade orientada, coerente e construtiva.
Toda proteína contém de 100 a 10.000 radicais de ácidos aminados. Esses numerosíssimos radicais, porém, pertencem a somente 20 espécies químicas diferentes que se encontram em todos os seres vivos, das bactérias ao homem.
Embora, em cada etapa do metabolismo, a enzima que tenha responsabilidade disso realizasse sua tarefa até a perfeição, a soma total dessas atividades só poderia conduzir ao caos, se elas não fossem, de algum modo, submissas umas às outras para formar um sistema coerente.
Cinética: estudo dos movimentos.
Na diversidade infinita dos fenômenos singulares, a ciência só pode procurar os invariantes.
Hoje sabemos que, da bactéria ao homem, a maquinaria química é essencialmente a mesma, tanto em suas estruturas quanto por seu funcionamento.
Se quimicamente os constituintes são os mesmos, e sintetizados pelas mesmas vias em todos os seres vivos, qual é a fonte de sua prodigiosa diversidade morfológica e fisiológica?
A física, porém, nos ensina que nenhuma entidade, microscópica pode deixar de sofrer perturbações de ordem quântica, cuja acumulação, no interior de um sistema macroscópico, alterará sua estrutura, gradual embora inevitavelmente.
A senescência e a morte os organismos pluricelulares se explicam, ao menos em parte, pela acumulação de erros acidentais de tradução que, alterando sobretudo alguns dos componentes responsáveis pela fidelidade própria tradução, aumentam a frequência desses erros que, pouco a pouco e inexoravelmente, degradam a estrutura desses organismos.
Dizemos que essas alterações são acidentais, que ocorrem ao acaso. (...) portanto, segue-se necessariamente que apenas o acaso está na fonte de toda novidade, de toda criação na biosfera.
(...) hoje, essa noção central da biologia moderna não é mais uma hipótese entre outras possíveis (...) É a única hipótese concebível.
Por conseguinte, devemos dizer que a mesma fonte de perturbações, de ruído, (...) está na origem da evolução na biosfera, e dá a conhecer sua total liberdade criadora, graças a esse conservatório do acaso, surfo ao ruído tanto quanto à música: a estrutura replicativa do DNA.
[Até hoje ainda, muitos] não conseguem compreender que, de uma fonte de ruído, a seleção tenha podido por si mesma tirar todas as musicas da biosfera. Com efeito, a seleção opera sobre os produtos do acaso, e não se pode alimentar alhures; mas opera num domínio de exigências rigorosas do qual o acaso foi banido.
O fator decisivo da seleção não é a luta pela vida, mas, no interior de uma espécie, a taxa diferencial de reprodução.
As únicas mutações aceitáveis são aquelas que, em todo caso, não reduzem a coerência do aparelho teleonômico, mas antes o reforçam ainda orientação já adotada ou, sem dúvida muito mais raramente, o enriquecem com possibilidades novas.
É no interior da população, e não de indivíduos isolados, que se exerce a pressão de seleção.
Considerando as dimensões dessa enorme loteria e a rapidez com que nela funciona a natureza, não é a evolução, mas a estabilidade das formas que poderia parecer dificilmente explicável, senão quase paradoxal.
A extraordinária estabilidade de algumas espécies, os bilhões de anos que a evolução cobre, a invariância do plano químico fundamental da célula, evidentemente só se podem explicar pela extrema coerência do sistema teleonômico que, portanto, desempenhou na evolução o papel ao mesmo tempo de guia e de freio, e só reteve, amplificou, integrou uma fração ínfima das chances que a roleta da natureza lhe oferecia em numero astronômico.
É impossível não supor que, entre a evolução privilegiada do sistema nervoso central do Homem e a da performance única que o caracteriza, não tenha havido um ajustamento bastante estreito, que teria feito da linguagem não só o produto, mas uma das condições iniciais dessa evolução.
Por volta dos 18 meses a criança pode ter um estoque de uma dezena de palavras que emprega sempre isoladamente, sem nunca associá-las, mesmo por imitação.
Processos fundamentais da evolução: replicação, mutação e seleção.
A probabilidade a priori de que se produza um acontecimento singular entre todos os acontecimentos possíveis no universo é vizinha do zero. No entanto, o universo existe.
O destino se inscreve na medida em que se cumpre, não antes. O nosso destino não estava escrito antes que surgisse a espécie humana, a única na biosfera a utilizar um sistema lógico de comunicação simbólica. (...) O Universo não estava grávido da vida, nem a biosfera, do homem.
Sistema nervoso central: de 1012 a 1013 neurônios interconectados por intermédio de umas 1014 a 1015 sinapses.
Quimeras de ficção científica à parte, o único meio de melhorar a espécie humana seria operar uma seleção deliberada e severa. Quem há de querer, quem ousará empregá-lo.
Durante centenas de milhares de anos, o destino de um homem se confundia com o de seu grupo, de sua tribo, fora da qual ele não podia sobreviver. A tribo, quanto a si, n ao podia sobrevier nem se defender, a não ser por coesão. Daí o extremo poder subjetivo das leis que organizavam e garantiam essa coesão. Determinado homem, por vezes, talvez pudesse infringi-las. Sem dúvida, porem, nenhum teria sonhado negá-las. Dada a imensa importância seletiva que tais estruturas sociais necessariamente assumiram, e durante tanto tempo, é difícil não pensar que elas devem ter influenciado a evolução genética das categorias inatas do cérebro humano. Essa evolução devia não só facilitar a aceitação da lei tribal, mas criar a necessidade da explicação mítica que a funda, conferindo-lhe a soberania. Somos os descendentes desses homens. Sem dúvida, foi deles que herdamos a exigência de uma explicação, a angústia que nos pressiona a procurar o sentido da existência. Angustia criadora de todos os mitos, de todas as religiões, de todas as filosofias e da ciência mesma.
Ontogênese: Série de transformações por que passa o indivíduo, desde a fecundação do ovo até o ser perfeito; ontogenia.
Imanente: Que existe sempre num dado objeto e
é inseparável dele.
Filosofia. Diz-se da atividade ou casualidade cujos efeitos não passam do
agente.
Filosofia. Diz-se de um ser que se identifica a outro ser. (Na filosofia de
Spinoza, Deus é imanente ao mundo.)
Os ocidentais podem sentir alguma dificuldade em compreender que, para certas religiões, não existe, não pode existir nenhuma distinção entre o sagrado e o profano. Para o hinduísmo tudo é do domínio do sagrado; nele, a própria noção de profano é incompreensível.
Enfim, o homem sabe que está sozinho na imensidão indiferente do universo, de onde emergiu por acaso. Não mais do que seu destino, seu dever não está escrito em lugar algum. Cabe-lhe escolher entre o Reino e as trevas.