MANIFESTO CONTRA A TENTATIVA DE ASSASSINATO DA LÍNGUA BRASILEIRA
“Os maiores perigos para a liberdade estão escondidos na insidiosa
intromissão cometida por homens zelosos, bem intencionados, mas sem inteligência.”
Louis Brandeis, da suprema corte dos EUA, em 1928. Citado no Estadão de 24/3/??.
O Deputado Aldo Rebelo manifestou à Comissão de Constituição e Justiça a sua firme intenção de assassinar a língua brasileira e convidou seus pares a lhe fazerem companhia. Convite aceito, a câmara deu aprovação a um projeto de lei para proibir o uso de palavras estrangeiras na propaganda, no editorial dos meios de comunicação em geral, e nas embalagens de todo tipo de produto, e, para isentá-los de qualquer acusação de crime lesa pátria, o enviaram ao Senado.
A língua é uma entidade viva. Consta no Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa que língua viva é aquela “comumente falada por uma nação ou povo”. Mas não só. Uma língua é viva por ser capaz de absorver inovações, modificar-se continuamente, crescer, amoldar, incorporar e influenciar. Toda língua só existe no seu estado atual porque nasceu primitiva e evoluiu, assim como o povo, seu único hospedeiro. É neste papel de facilitadora da comunicação que ela se exercita, experimenta novos vocábulos, busca novas combinações, se recria a cada instante, aumentando sua eficácia.
A língua não é viva pela vontade de legisladores ou acadêmicos. Muito menos evoluiu por causa deles. A cultura popular, esta sim, é a criadora, enquanto à cultura erudita cabe o papel de organizadora e avalista daquilo que já está consagrado.
A maioria de nós não sabe se expressar através da dança, da pintura ou da música, tocada ou cantada. Mas todo indivíduo, por mais inculto, é capaz de construir uma idéia e comunicá-la através da fala. A língua é, portanto, a forma mais básica de expressão cultural porque nenhuma habilidade especial nos é exigida.
Este projeto de lei, que leva o número 1676, nasce de um parto de útero doentio. E inconstitucional porque contraria os incisos IV e IX do artigo 5º da Constituição:
IV - é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato;
IX - é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença;
Compreendemos as razões de quem propõe tal lei quando nos lembramos de que o deputado é comunista. Comunistas são aqueles que vêem fantasmas ameaçando o povo por todos os lados. Para eles, nós somos fracos e carentes de uma proteção estatal (mas desde que eles estejam no controle do Estado). Eles se colocam acima de nós e se autonomeiam nossos protetores. O princípio comunista é o de que esta turba denominada povo precisa de uma elite aboletada no poder, policiando o que podemos ou não podemos fazer, sempre com a desculpa de que estão nos protegendo. Eles começam aos poucos, você não percebe. Começam, assim, proibindo-nos de usar algumas palavras. O próximo passo será nos proibir de falar. Até chegarem à proibição do pensar. É quando surgem as sessões de tortura nos porões de delegacias e quartéis. Dejá vu.
Comunistas também são aqueles que utilizam o Estado como a melhor forma de obter riqueza e poder pessoal. A fórmula é simples. Elabora-se uma lei para proibir algo. Mas a toda proibição corresponde, necessariamente, a criação de uma entidade fiscalizadora. Sem esta, aquela não tem efeito. Entidades fiscalizadoras são feudos que irão pertencer a um “senhor” que, ou será o político autor da lei, ou um de seus “camaradas”, no caso dos comunistas, ou um dos “companheiros”, no caso dos petistas, ou um dos “correligionários”, na maioria das outras correntes. O importante é que, naquele assunto (feudo), existe um “senhor”, assim como Átila Nunes era o “senhor” do feudo “Procon”.
Mas a manutenção de um feudo fiscalizador consome recursos do orçamento do reino. Recursos para construir o palácio. Recursos para alimentar, vestir e proporcionar lazer para os duques e duquesas, barões e baronesas, condes e condessas, enfim, todos os nobres da nobre corte. Recursos para pagar os bobos da corte (bajuladores do senhor feudal) e cobrir a folha de pagamento da criadagem necessária para cuidar da manutenção do feudo. E recursos para manter a enorme equipe de ouvidores que se espalhará por todo o reino com a missão de “pegar” os infratores gerando receita para o feudo, seja através de multas, seja através de suborno obtido na troca da ameaça de prisão pela vista grossa e a mão molhada.
Agora nos perguntemos qual o resultado prático desta aplicação absurda de dinheiro? Quantas crianças deixaremos anualmente de alfabetizar para sustentar uma politicagem destas?
O deputado acusa a propaganda de ser um agente do mal, mas a propaganda não pode acusar o deputado de falta de criatividade. O feudo que ele deseja parece ter um “business plan” (ôps) que projeta um ganho de capital capaz de fazer o índice Nasdaq voltar aos velhos (?) tempos. O BP prevê uma fiscalização diária em todos os jornais e revistas, emissoras de rádio e televisão; em todos os websites (ôps) da internet brasileira; nos rótulos de embalagens de mais de 10.000 produtos. Vocês podem imaginar o exército de fiéis servidores para garantir o cumprimento da lei e a aplicação das sanções? Inimaginável! Mas, em compensação, eu tenho absoluta certeza que vocês saberão quantificar o que isso poderá gerar em multas e propinas. E isto sem falar na quantidade de processos que se acumularão sobre a nossa fantasticamente já emperrada justiça.
O deputado diz que o objetivo da lei é apenas “coibir o abuso, o pedantismo que humilha brasileiros desconhecedores de outra língua senão o português”. Deputado, o que humilha o cidadão brasileiro é desconhecer a língua brasileira. É ser analfabeto. É não ter conhecimento para poder ler as suas razões e as críticas a elas (como esta) e poder, através da reflexão, chegar à sua própria opinião. O que humilha o cidadão, deputado, é saber que ele está subordinado à tutela de políticos porque não sabe ler e escrever. O que humilha é ele não poder exercer a auto-determinação para incorporar, modificar ou recusar um estrangeirismo qualquer. Mas tirar o povo do analfabetismo é transformá-lo de gado em cidadão e isso não interessa, principalmente a políticos comunistas que pregam o Estado como o grande “senhor”.
O que me assusta não é um deputado comunista propor um projeto destes. É coerente e esperado, afinal ele está lá para propor projetos de acordo com ideais comunistas. O que chama a atenção é a facilidade com que convenceu muitos outros a segui-lo. Por isso, espero que gente mais preparada do que eu possa demover senadores de aprovarem este aborto. Pessoas como os notáveis da Academia Brasileira de Letras, em cujo site não encontrei uma linha sequer sobre o projeto de lei apesar de lá estar dito que ela não se furtará “a participar das grandes questões que desafiam a cultura contemporânea,” e que a Casa de Machado de Assis “é, portanto, o fórum privilegiado e com grande tradição para este novo mundo em que as culturas se enlaçam, geram diálogos fecundos e até instantâneos, por força do milagre da comunicação.”
Mas lá encontrei, em texto do acadêmico Arnaldo Niskier, a opinião de que “Não há como conter esse crescimento, mesmo que, por vezes, seja ele fruto do que o crítico Wilson Martins chama de "desnacionalização lingüística (...)”
Não há “como conter” porque não há “o quê conter”. Toda a argumentação do Deputado Aldo Rebelo se evapora quando o mesmo Prof. Arnaldo Niskier nos recorda que: “Por outro lado, acreditamos que houve em nosso país um fenômeno social que, exagerando um pouco, fez mais pelo Brasil em termos de cidadania do que a escola. Estamos nos referindo ao futebol, que, por ocasião do seu aparecimento aqui, exigia que todos os jogadores falassem em inglês, (...) As 11 posições do time eram as da terminologia original, e o árbitro, o referee. Os puristas da língua propunham o termo balípodo para substituir football, mas o povo se encarregou de democratizá-lo. Aos poucos, o match foi substituído por jogo, ground por campo e as posições em campo transformaram-se em centro, lateral, goleiro, zagueiro, etc. Tudo isso sem a intervenção da língua culta.”
E sem a intervenção de zelosos deputados comunistas. É por eles e outros que precisamos dar atenção ao que Armando Ferrentini disse, em editorial do seu Caderno de Propaganda & Marketing: “O silêncio continuado da sociedade faz com que surjam defensores da pátria perfeitamente dispensáveis como Rebelo, que acabam levando a sério o que julgam ser tarefas messiânicas.”
O professor Pasquale Neto, a quem a nação passou a conhecer e respeitar por nos mostrar a beleza e a força de nossa cultura expressa na língua, lembra-nos que “A incorporação de palavras estrangeiras é parte do processo natural de evolução de uma língua, sobretudo quando se trata de línguas de países que mantêm algum tipo de relação.”
Sempre me pareceu um absurdo este esforço imperialista do Brasil em “unificar” as línguas portuguesas. É ainda no texto de Arnaldo Niskier (que aconselho todos a ler) que vamos encontrar a exposição de um processo que atrapalha este objetivo. Ele diz: “É certo que a língua hoje falada no Brasil, como a usada em Portugal, literária ou não, escrita por acadêmicos ou criada nas ruas, não é a mesma de há 100 anos; como não é igual à de cinco ou duas décadas. Ela evolui. Talvez no futuro se possa falar em língua brasileira, em língua angolana, em língua moçambicana, em língua guineense.”
Parece que em entrevista à imprensa, o deputado acusa a propaganda de ser “o principal canal de deterioração (sic) da língua brasileira.” E em sua magnífica retórica, ignorante que é em comunicação, nos chama de exibicionistas e acrescenta: “Esses profissionais querem aparecer, querem se mostrar up to date (sic)”. O que o deputado não sabe é que a propaganda se utiliza da linguagem que o público-alvo da mensagem entende. Ela, portanto, não propõe, dispõe. Faz uso do que já está consagrado, porque, se não o fizer, será ineficaz na sua função básica que é comunicar.
A camisa de força que esta lei representa pode ser claramente percebida no absurdo do § 1º do artigo 3º que dispõe sobre quando é que a proibição não se aplica. Foi preciso incluir no texto do projeto de lei que uma das exceções onde a lei não se aplica é no “ensino e aprendizagem das línguas estrangeiras” (!!!).
E com isso eu me vou. Não sem antes pedir que se você não quer ver a língua brasileira, se não morta, no mínimo encarcerada nos porões da ignorância, envie mensagem aos senadores, à presidência da república, ao seu deputado, aos acadêmicos da ABL. Faça-se ouvir. Pelo menos a gente cumpre com a nossa parte e fica com a ilusão de que nós temos alguma voz. Vai ficar mais fácil levantar da cama amanhã.
Publicitário, detesta hipocrisia e gente que se acha melhor que os demais. É contra a tentativa de assassinato da língua brasileira, a favor do direito ao ensino básico gratuito e obrigatório para todo cidadão brasileiro, e da disseminação de micros com acesso à internet em todas as escolas.
P.S.:
Referências:
Aldo Rebelo : Neste 2016, não é mais deputado:
https://pt.wikipedia.org/wiki/Aldo_Rebelo
Academia Brasileira de Letras: www.machadodeassis.org.br
“A Língua Portuguesa no Século XXI” - Prof. Arnaldo Niskier – http://www.machadodeassis.org.br/abl/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=2454&sid=19
Pasquale Cipro Neto - http://www.professorpasquale.com.br/site/acolecao/
Estrangeirismos: Guerra em torno das línguas: Resenha da obra de Carlos Alberto Faraco – www.filologia.org.br/revista/artigo/7(22)08.htm
Integra do projeto de lei: http://www.paulohernandes.pro.br/projeto1676.html
Senado Federal – www.senado.gov.br
Câmara dos Deputados – www.camara.gov.br
Presidência da República – www.presidenciadarepublica.gov.br
Outros textos meus você encontra no blog DESNUDANDO A HIPOCRISIA