DESTINO DE UM PEREGRINO ERRANTE

 

 

- Como vai você? É seu Luis que me cumprimenta.

 

- Assim, assim, como todos. E o senhor, o que tem feito?

 

- Uma coisa e outra. Um conserto aqui, outro ali? Uma conta pra pagar, o INSS a receber, um cochilo depois do almoço, um joguinho de baralho no final da tarde.

 

- E uma viagem de vez em quando, aposto, que ninguém é de ferro, é ou não é seu Luís? Vida boa essa de aposentado!

 

- Mas me fale de você, o que anda fazendo? Ainda continua na publicidade?

 

- Ainda. Um dia bom, outro ruim. Como tudo. Mas o que faço mesmo, todos os dias, dia inteiro, é procurar, procurar e procurar.

 

- Mas procurar o quê homem?

 

- Meu pai.

 

- Seu pai!!!???

 

- É, seu Luís, procuro por meu pai. Perdemos-nos dele ou ele de nós, quem há de saber?

 

- Mas como foi isso!? Quando foi!?

 

- Não sabemos ao certo. Certo apenas que um dia nos demos conta de que já não vivia mais com a gente. Creio que a vontade já vinha de tempo, foi crescendo, foi crescendo, até que um dia foi embora. Sem destino informado, sem nada. Desde então venho nessa procura. Pergunto aqui, pergunto ali. Mas até agora, muito pouco descobri. Digo a quem encontro coisas assim.

 

É fácil reconhecê-lo. Meu pai tem cara de cara quieto e sério, que só ri entre amigos e família depois de dois copos de cerveja. Meu pai tem aquele jeito de quem não teve pai, não teve mãe. Jeito de quem se criou sozinho, deitado na cama, puxando o sono na solidão do escuro do quarto. Por isso, creio que meu pai se criou no medo. Desde logo vestiu a armadura para se proteger do aperto no coração quando nos sentimos sozinhos, abandonados, com medo do futuro. Mas meu pai tem a cara de quem teve sorte na vida. Cara de quem teve gente que o ajudou a estudar até o segundo grau e a ser um profissional dos melhores no ramo de confeitaria. Gente que o ajudou a começar a vida de casado dando-lhe de presente uma bela casa, num bom bairro. Coisa de privilegiados pela sorte. Meu pai tem a cara do homem generoso. Quando chegou sua vez de ajudar, ajudou irmãos em tudo o que pode e o próprio pai quando e com quanto pode. Meu pai tem a cara de um homem de vida invejável. Saiba você que ele é o único sujeito que conheço que tirou três meses de férias por ano, anos a fio. Tem a cara de quem gosta de viajar. Minha infância passou em trens e ônibus, em estradas empoeiradas ou enlameadas. Em hotéis 2 e 3 estrelas e em casas de madeira no sul do país. Você o viu por aí?

 

As respostas variam. Uns dizem que o viram pra me animar. Outros afirmam tê-lo visto, mas descrevem pessoas que nada têm de parecido com meu pai. Dia desses alguém me disse que é quase certo ter visto meu pai, completamente nu, lá pela Terra dos Homens com Medo. Eu disse “não pode ser”. O meu herói na terra do medo? Por que ele teria se refugiado num lugar como aquele!? O que lá haveria de tão atrativo para um lutador incansável como ele? Um homem íntegro. E integridade sempre me pareceu um ato de coragem. Ser íntegro é pra cabra macho, pra quem tem colhões. Não, não pode ter sido o meu pai. Além do mais ele sempre usou aquela armadura contra o medo. Ou então seria isso? Ele se despira de sua armadura, tão pesada, carregada por tantos e tantos anos. Mas, como filho, me é difícil aceitar (apesar de poder compreender) que meu pai esteja perdido na Terra dos Homens com Medo. O que posso fazer para trazê-lo de volta para junto de nós?

 

Prefiro acreditar que não era ele e continuo a procurar. Alguém sugeriu que ele possa estar no Vale dos Homens sem Vida. Este vale é habitado pelos que desistiram da vida. Estão vivos, mas mortos para a vida. Descobrem-se sem forças. Pernas moles, corpo curvado, passo arrastado. Perambulam sonâmbulos pelos caminhos repetindo ininterruptamente que eles não vão conseguir. Não importa mais o quê. Eles só repetem que não vão conseguir. Descarto esta idéia porque meu pai é um homem cheio de saúde. Lúcido. Tem uma qualidade de vida muito superior à maioria das pessoas. Tem uma família sólida. Não consigo imaginá-lo num lugar como este.

 

Mas outro dia alguém me assegurou tê-lo visto perto de nossa casa. Perguntei como o reconhecera e ela me respondeu que não fora fácil porque ele estava mesmo irreconhecível. Era um morador antigo do bairro que conheceu meu pai desde quando fomos para lá, 50 anos atrás. Ele, como todos da vizinhança, via meu pai como uma das pessoas proeminentes do bairro. Afinal, meu pai era o dono da mais famosa confeitaria da cidade. Vinha gente do Rio só pra saborear os doces, bolos e pães que ele fazia. Como vizinho, comportamento irrepreensível. Nunca incomodou ninguém e sempre ajudou quem ajuda lhe pediu. Nunca deixou uma conta no armazém por pagar. Um homem honesto, discreto e simples. Este era o meu pai para as pessoas do bairro. Como acreditar que este homem era o mesmo que agora me descreviam ter visto: de chinelo velho, calça rota, camisa para fora das calças, vestindo um casaco de lã em pleno verão, cabelos despenteados, olhar no chão, triste, colhendo água na bica da praça. A imagem de um andarilho não fosse a barba feita. Este detalhe, a barba feita, chamou a atenção deste vizinho que então, diz ele, deu a certeza de ser meu pai. Começo a acreditar que era mesmo meu pai porque jamais o vi com a barba por fazer. Barbear-se foi uma rotina de vida que ele cumpriu religiosamente.

 

Mas meu pai, andarilho!? Prefiro continuar a procurar.

 

Uma senhora me perguntou se eu já ouvira falar da Vila dos Isolados. Diz ela que fica lá pros lados das Montanhas Caladas. Aconselhou procurar meu pai por lá, pois é o destino dos que perdem seus objetivos. São pessoas que escolheram não fazer nada e por não fazerem nada vão se afastando dos que fazem. Elas perderam o prazer de realizar. Qualquer coisa. Esta senhora me conta que no início as pessoas vão rareando a conversa. Quando conversam, qualquer assunto as irrita. Tornam-se intolerantes para tudo. Até o futebol deixa de ser um prazer. Tudo é motivo para um comentário negativo. Existem alguns para quem até o cantar dos passarinhos é irritante. Com isto, elas vão se afastando, se distanciando cada vez mais até que descobrem ter chegado à Vila dos Isolados. Despeço-me prometendo fazer uma caminhada lá pelas trilhas das Montanhas Caladas.

 

Um velho, ouvindo este relato, me disse conhecer um caminho para a Vila dos Isolados que começa na encruzilhada das 3 Fontes, por onde ele mesmo já passara alguns anos antes. O nome vem do fato de ali se dar o encontro de 3 fontes. A Fonte do Cansaço, a Fonte do Desestímulo e a Fonte da Vida. A água da fonte do Cansaço deixa os homens curvados. Ao bebê-la, as pessoas param de andar, de trabalhar, de fazer as mínimas coisas porque, eles dizem, estão cansados de tudo. Mas há os homens que não conseguem enxergar seus feitos. Eles irão preferir a água da Fonte do Desestímulo. Como não reconhecem valor em si mesmos, não reconhecem a força que têm. Diz o velho que a água desta fonte tem um efeito sobre a temperatura do corpo. Quem a bebe, passa a sentir frio mesmo sob o sol mais quente do verão. Com isto, as pessoas vivem encapotadas e encurvadas. Ele me explica que quando se chega nesta encruzilhada – que na verdade é uma parada para recuperação de energias - existem 4 caminhos a seguir. Uns recuperam suas forças bebendo da fonte da Vida. Sentem o sabor das conquistas realizadas, dos sucessos obtidos. Após um tempo de reflexão, traçam novos objetivos, erguem o corpo, levantam o olhar e seguem em frente, pela trilha que leva ao Mar da Tranqüilidade. Outros temem beber a água de qualquer das fontes e retornam. Ao retornar, a todo o momento irão enfrentar o passado, remoer os fracassos. As mãos ficam trêmulas, a garganta aperta e eles choram. A maioria irá terminar na Terra da Amargura onde todos culpam os outros por tudo. Há uns poucos que seguem à esquerda, rumo ao Mundo Desconhecido, onde vivem os loucos, os que perdem a sanidade, o juízo. E existe a trilha à direita, em direção à Vila dos Isolados, que talvez seja o caminho que meu pai tenha escolhido depois de beber das Fontes do Desestímulo e do Cansaço. Penso por um momento, e concordo com o velho: sim, é possível.

 

Meu pai... Me pego chorando. Onde estará meu pai a quem devo tanto, a quem devo tudo porque o que tenho é o que dele herdei? Esse jeito mais sisudo, mais calado. Essa coisa de transparecer em tudo. Sentir o que pareço sentir. Falar o que penso. Esse gosto pela leitura. Pelos romances policiais, pelos relatos e filmes de guerra. Esse caráter peregrino, viajante do conhecimento que me deixou esse sujeito eclético, meio parecendo que sabe de tudo e que nada sabe. Essa honestidade levada aos extremos, à beira da burrice. Este amor pela liberdade. Pelo livre arbítrio. Este corpo magro. Estas entradas na testa. Essa constante exigência sobre tudo o que faço. Uma insatisfação com o que faço, me exigindo mais do que posso. Preciso encontrá-lo porque temo, eu, um dia, me perder. Quero que ele me ensine o que devo fazer quando chegar à encruzilhada das 3 Fontes. Será que o teremos de volta? Quando? O que posso eu mais fazer? Existirá uma maneira de resgatá-lo de onde seja lá estiver? E se eu não puder encontrá-lo, ele, sozinho, poderá encontrar o caminho de volta? Algumas pessoas me dizem que não tenho chances em minha procura. Dizem-me que serei mais um peregrino errante, seguindo informações falsas, propositalmente dadas para me confundir. Dizem-me que se ele quiser voltar, voltará, pois só depende dele, e se ele não volta, é porque não quer. Mas por que não desejaria voltar para o lugar onde estão os que o amam? Ou ele não sente que nós o amamos? Não creio. Mas, então, por que ele não volta?

 

Sigo em minha procura gritando: que destino pode ter um peregrino errante? A resposta me vem de longe, se propagando pelo universo, vinda lá do Planeta dos Homens Livres: “O destino que eu me der”.

 

P.S.: OK, pai. Mas não esqueça, estamos aqui, à sua espera, com muitas saudades e um pouco de medo.

 

29 de abril de 2004